capa do livro retirada do Google
O Andarilho das Sombras é o primeiro livro da série Tempos de Sangue, do escritor paulistano Eduardo Kasse – que já organizou e editou diversas coleções de contos na Editora Draco. Com uma clara inspiração dos vampiros de Anne Rice, Kasse mistura aspectos de ficção histórica e terror com a clara paixão que tem por personagens e pelas obras que eles referenciam, seja desde as religiões pagãs do norte da Europa, seja pela História Medieval.
O título não poderia ser mais fortuito. Harold Stonecross é um vampiro que vaga pela Inglaterra do século XI e XII sem rumo ou objetivo. São-nos constantemente descritos a solidão e o excesso de tempo vividos pelo personagem, sendo estes aspectos intrínsecos à imortalidade e a falta de segurança que ele proporciona a si e a quem cruze seu caminho. Harold, em certos momentos, apresenta-se como um ser entediado, com a imortalidade servindo como uma maldição e ele apenas aceitando seu calvário.
Essa é somente a introdução de uma das linhas do tempo nas quais nós somos colocados durante o livro. A obra é composta por três linhas: uma em que temos o Harold vampiro experiente; depois um Harold recém-vampiro apaixonado e, por fim, um Harold criança-adolescente em seu amadurecimento. Todas as linhas se cruzam ao final do livro, tendo a descoberta pela qual os vampiros existem e qual sina o personagem principal carrega. O uso de linhas temporais pode confundir o leitor menos atento, já que são inexistentes as marcações temporais para auxiliar aqueles que ainda não tem costume com esse estilo. Entretanto, ao final, a conexão realizada e a catarse gerada pelo autor fazem com que a confluência desses pontos aprofunde a personalidade do Harold, deixando de parecer um personagem “plano”.
Como já citado, a inspiração do autor em vampiros sensuais (e sexuais) de Anne Rice é bastante presente na obra. Quase todos os capítulos são seguidos da fórmula “Harold vai caçar – Transar com a vítima – Matar a vítima – Dormir”. É um aspecto que reforça a rotina e o tédio do personagem, destacando o tédio que o mesmo passa a sentir nesses momentos. As cenas, inicialmente chocantes e provocativas, passam a ter o ar de uma atividade ordinária, como respirar e, nesse caso, comer (em seus mais amplos sentidos). Entretanto, para quem vier a ler a série seguidamente, perceberá que a fórmula descrita acima e a repetição de verbos para descrever as ações sexuais transformam o possível deslumbramento inicial em algo cansativo, no qual o leitor sabe onde vai começar e terminar.
E, como se passa na Idade Média, não poderiam faltar críticas à Igreja Católica, centro da autoridade do período. Tal qual as cenas de sexo, a representação da Igreja e de seus membros são repetitivas. Inicia-se com a clara crítica à corrupção eclesiástica, à hipocrisia dos padres e bispos, à sexualidade reprimida e o exercício do monopólio da fé (e poder) para interesses pessoais e escusos. Ao longo do livro e da série, essas cenas e capítulos terminam quase sempre com padres se masturbando ou morrendo tendo orgasmos por algum vampiro, tornando uma crítica que começa, novamente, interessante e, ao fim, torna-se artifício para que a história ganhe volume.
Apesar de citar esses pontos do livro e adiantar alguns aspectos que percorrem toda a série, Kasse é um escritor de muitas qualidades e soube muito bem como montar seu quebra-cabeça. Ele detém uma qualidade rara em escritores de usar a visceralidade de uma cena para carregar realismo e sofrimento, sem parecer nojento ou absurdo – o que torna a cena ainda mais aterrorizante ou agoniante. O livro conta com ótimos momentos de descrição de torturas medievais e métodos de “quebrar” o espírito que parecem apenas ficção, o que, assustadoramente, não são. Kasse fez uma vasta pesquisa histórica, sendo os locais citados reais e o cotidiano descrito por ele é bastante próximo daquilo que se especula ser da Idade Média Europeia. Esse aspecto vai desde detalhes simples de organização social até questões essencialmente cotidianas, como a crença de que a água adoecia e por isso não se tomava muito banho ou o uso de vinho/cerveja para beber já que a água era bastante suja.
Por fim, vale lembrar que um autor não é nada sem seus fãs e Kasse sabe muito bem como tratá-los. Não é um aspecto em si levado em conta em uma resenha literária, mas é importante destacar o carinho dele por aqueles que opinam sobre suas obras e como tem prazer em explicar, nas feiras ou encontros, todos os aspectos que o levaram a fazer a obra. A paixão do criador por sua obra é contagiante e perceptível. O livro, como apontado, tem alguns deslizes. Entretanto, é uma excelente ficção sobre história e terror – com uma pitada de contos eróticos da revista Brazil – que vale a pena ser lido e traz orgulho ao mercado editorial brasileiro.
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