É impossível, ou talvez apenas desprimoroso, dissertar sobre esta obra-prima sem antes falar um pouco sobre o atual cenário em que se encontra o clássico gênero cinematográfico ao qual ela pertence. O horror é, sem dúvida, um dos gêneros cinematográficos mais carentes de produções de qualidade, sofrendo constantemente com baixos orçamentos, falta de inventividade e, consequentemente, excesso de clichês. Nos últimos anos, contudo, foi possível constatar uma surpreendente reinvenção do gênero, com o surgimento cada vez mais frequente de histórias inéditas, contadas de forma original, muitas vezes por diretores estreantes. As obras às quais faço menção deixam de lado as velhas e saturadas fórmulas do gênero, para discutir problemas reais e cotidianos, utilizando o medo como ferramenta.
Isso fica evidenciado, por exemplo: no racismo e na intolerância presentes em Corra!, bem como no tema da desigualdade social abordado em Nós, ambos de Jordan Peele; na metáfora para doenças sexualmente transmissíveis e na crítica direcionada ao puritanismo Norte-americano de Corrente do Mal, dirigido por David Robert Mitchell; no retrato grotesco do despertar sexual em Grave, de Julia Ducournau; no sentimento de culpa e religiosidade que permeia toda a família em A Bruxa, obra de Robert Eggers; na visão de Jennifer Kent sobre a depressão em O Babadook; e, finalmente, nos graves distúrbios psicológicos retratados em Hereditário.
Alçado, merecidamente, ao patamar de obras como O Exorcista e O Iluminado, Hereditário é o longa de estreia do promissor diretor Ari Aster, que o escreveu e dirigiu. Conta com um elenco encabeçado por Toni Collette, na melhor interpretação de sua carreira, e Gabriel Byrne, mais contido, mas não menos competente. O trabalho de Ari Aster é irretocável, a construção do suspense se dá de forma sutil e cadenciada, por vezes apenas sugerindo, deixando em segundo plano ou até mesmo fora de quadro, momentos aterrorizantes e impactantes. Dessa forma, o choque causado no espectador pelas cenas mais explícitas ganha um contorno e uma proporção deveras maior do que em filmes onde ocorre a superexposição da violência gráfica. A composição estética é impecável, alcançando seu apogeu no paralelo magnificamente estabelecido entre as casas em miniatura e os acontecimentos que acometem a família protagonista.
Tudo culminando no apoteótico salto em direção à morte da sanidade. Um salto, parafraseando Nietzche, no abismo tanto tempo encarado, que finalmente retribuiu o olhar. Um final sublime, ambíguo e angustiante em iguais proporções, que justifica perfeitamente o título do filme. Por infortúnio, a cena prossegue, prolongando o final de forma desnecessária e o conduzindo com passos trôpegos a um monólogo superexpositivo, que tenta, precariamente, trazer uma explicação simplista e insatisfatória para os elementos sobrenaturais da história. Um pecado cometido por aquele que soube, durante toda extensão da obra, exatamente o que deveria ou não ser mostrado em câmera, e o momento oportuno de se mostrar.
Impossível não imaginar que essa escolha duvidosa tenha sido imposta pelos produtores, no intuito de possibilitar uma melhor aceitação do longa por uma considerável parcela do público que não está adaptada a obras tão interpretativas e metafóricas, necessitando, em razão disso, de um final mais palatável e conciso. O prolongamento desnecessário do final não tira, nem sequer ofusca, o brilho da obra. Contudo, revela um problema ainda mais intrínseco ao gênero de terror do que os já mencionados, um problema que faz com que filmes de terror sem conteúdo, sortidos de jump scares fáceis e estruturados sobre clichês, ainda sejam muito mais rentáveis para os seus estúdios do que filmes como Hereditário. Esse problema é que, apesar de os “auteurs” do gênero de terror aparentarem estar prontos para inovações e mudanças, a maior parte do seu público ainda não parece estar.
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