Muito se discute a respeito da qualidade de produções nacionais no universo dos filmes e séries. Eu, particularmente, devo admitir que sou fascinado por nossos produtos audiovisuais, e Boca a Boca (2020) serviu apenas para reforçar toda a minha admiração.
Confesso que decidi assistir à recente produção brasileira da Netflix um pouco desconfiado, depois de ter me decepcionado com outras obras. No entanto, à medida que as personagens e a trama foram me fisgando, o que acabou me decepcionando não foi a qualidade da produção, mas sua duração. Ela parece acabar rápido demais e deixa um gostinho de “quero mais” no espectador.
Com apenas seis episódios, que têm em média 40 minutos, a série é roteirizada e dirigida por Esmir Filho. Além de outras produções, como Eu Nunca (2014), Alguma Coisa Assim (2018) e Baleia (2015), ele também dirigiu o divertidíssimo curta-metragem Tapa na Pantera (2006), protagonizado por Alice Vergueiro (1935-2020) — fica aqui outra recomendação —, e Saliva (2007).
Boca a Boca conta a história de uma doença infecciosa que começa a se espalhar entre os jovens de uma pequena cidade pecuarista do interior, chamada Progresso, através do beijo. Inicialmente, a doença provoca uma mancha roxa na boca das pessoas contaminadas, mas vai se agravando e outros sintomas vão surgindo, como visão turva e confusão mental. No fim, pode levar os infectados à morte.
A trama gira principalmente em torno de Francisco, ou Chico (Michel Joelsas), Fran (Iza Moreira) e Alex (Caio Horowicz) e a história se desenrola quando Isabel (Luana Nastas), a melhor amiga de Fran e por quem a personagem está apaixonada, acorda com uma mancha roxa nos lábios. Isabel é filha do prefeito e isso acontece após uma festa com diversos alunos da escola na Aldeia, onde vive parte da população local que desperta repulsa dos demais moradores da cidade.
Com o surgimento de outros casos semelhantes, Chico, Fran e Alex passam a juntar as peças. Descobrindo que o vírus pode ter começado a se espalhar através do beijo, utilizam uma espécie de aplicativo para montar um mapa que conecta todas as pessoas que se beijaram durante a festa.
Em um primeiro momento, o mapa parece servir para que os protagonistas tentem interromper o ciclo de contaminações, mas acaba ganhando uma outra utilidade interessante para o enredo. O que acontece é que o mapeamento dos contaminados, que surge, inicialmente, como algo bom, acaba se tornando um vetor de preconceitos e exclusão. Essa questão pode passar desapercebida, fazendo com que o espectador pense que o diretor simplesmente se esqueceu de sua função ou se livrou da ideia por meio de uma facilitação narrativa.
A presença dos dispositivos eletrônicos, aliás, é constante, levando em conta que a série tem uma pegada de thriller adolescente, apesar da classificação indicativa (+18). Por isso, conversas através de aplicativos de mensagens ou mesmo stories ajudam a dar dinamicidade, e são recursos inseridos com muita naturalidade, ajudando a compor uma identidade mais jovem e moderna. Essas inúmeras telas que aparecem o tempo todo se relacionam muito com o que vivemos atualmente. É como se a fronteira entre os mundos que podemos chamar de “real” e “virtual” desaparecesse e as duas realidades se tornassem um só produto, fruto de uma simbiose.
A trilha sonora é uma viagem à parte, daquelas que valem a pena incluir na playlist. Ela conta com músicas de artistas nacionais como Letrux, Baco Exu do Blues, Trupe Chá de Boldo, além de nomes internacionais como Kindest Cuts, The Knife, Sophie, Chromatics, Mary Komasa e Art Fact.
O que mais chama a atenção, no entanto, é a estética da série, que possui uma paleta de cores baseada principalmente no rosa e no azul.
A primeira parece ajudar a construir um ambiente de constantes demonstrações de afeto e carinho, expressados através do beijo e do toque, que estão muito presentes na história. Relacionado ao amor e a inocência, o rosa também contribui para a proposta de ressaltar as descobertas do mundo adolescente, levando em consideração a ligação da cor com a inocência.
Já o azul remete ao mundo virtual das telas e em muitos momentos transmite uma ideia de misticismo, de que acabamos de adentrar em um universo onírico. Tudo isso é misturado a luzes de neon e muitas vezes mergulha de cabeça no Vaporwave, o que acaba gerando um contraste muito legal com a ambientação da série, gravada em uma parte histórica da Cidade de Goiás. O estilo arquitetônico barroco do local chega a lembrar a cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais.
A dualidade não está apenas nas cores, mas em tudo: no conservadorismo dos moradores de uma cidade chamada Progresso; na separação entre os habitantes da cidade e os moradores da Aldeia. Está também na fazenda comandada por Doni Nero (Bruno Garcia), pai do Alex, que é separada entre a Sede — onde fica a casa do pecuarista mais poderoso da região — e a Colônia — onde vivem os trabalhadores e seus filhos, entre eles a Fran.
Esse, aliás, é um núcleo que trata tanto sobre questões de classe quanto raciais, que no Brasil estão intrinsicamente relacionadas. Dalva, que é uma mulher negra, dedicou toda a sua vida trabalhando para a fazenda, mas corre o risco de ser expulsa da casa em que vive por não conseguir mais se dedicar aos trabalhos como antes devido a uma doença. Já a Fran é amiga de Alex, filho do dono da fazenda, e percebe o tratamento diferenciado que ela e sua mãe recebem por parte dos patrões, enquanto Alex parece inicialmente alienado a respeito de todas essas questões.
A dualidade também é forte na relação entre pais e filhos, entre o ímpeto explorador da juventude e a força controladora dos mais velhos. Isso também se manifesta indiretamente no elenco, que conta com jovens atores menos conhecidos e outros já renomados. Entre eles, estão: Denise Fraga, que interpreta a diretora da Escola, Guiomar Araújo; Bianca Byingnton, no papel de Carminha Nero, esposa de Doni Nero; Thomas Aquino, cujo personagem, Maurílio, vive um “romance proibido” com Chico; e Grace Passô, que interpreta a Dalva, mãe da Fran.
A própria escola, que se chama “Modelo”, não consegue se conectar com seus alunos. Quando tenta, faz isso invadindo sua privacidade — como quando a diretora, Guiomar, olha os celulares dos alunos antes de buscar arrancar deles qualquer confissão. O próprio ambiente, que deveria ser agradável e estimulante, muitas vezes chega a lembrar um curral, com coisas que se parecem com feno e palha espalhadas pelo chão como se os alunos fossem gado.
Mas o maior acerto da série, que a partir da metade começa a transitar ainda mais entre os gêneros de ficção científica e suspense, é como ela retrata a epidemia. Particularmente, como muitos jovens reproduzem atitudes que vemos durante a pandemia da COVID-19, se negando a aceitar a gravidade da doença, promovendo desafios do beijo, ou mesmo excluindo socialmente aqueles que podem ter se contaminado durante a festa.
É importante destacar, no entanto, que apesar de Boca a Boca ter sido lançada em meio à pandemia, a trama já havia sido escrita há dois anos e as gravações tiveram início em 2019 — o que torna tudo ainda mais brilhante e, ao mesmo tempo, sinistro.
Ao final, muitas pontas ficam soltas, o que é proposital, já que a história deve ter continuidade em uma segunda temporada. Além disso, acredito que ela poderia ter sido um pouquinho mais longa, com pelo menos mais três episódios.Boca a Boca não é a produção que vai revolucionar o audiovisual brasileiro, apesar de ser inovadora em muitos aspectos. Ainda assim, pode sim ser considerada a melhor série brasileira da Netflix até o momento, o que já é um grande feito.
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