Se você é o tipo de pessoa que julga um livro pela capa, convido a arriscar a leitura dessa história que, apesar de ter uma capa nada convidativa, acredito ter grandes chances de surpreender. A amiga genial convida o leitor a mergulhar na história de duas amigas, Helena Greco e Raffaella Cerullo, que crescem em um contexto de dificuldades e violência extrema.
O primeiro livro da tetralogia napolitana foi lançado em 2015 pela Globo Livros, no selo Biblioteca Azul. A autora mantém sua identidade em sigilo e utiliza o pseudônimo Elena Ferrante, pelo qual é conhecida. A história começa quando Lenu (Helena) é informada de que Lila (Raffaella), sua amiga de infância, desapareceu. Lenu, agora com quase 60 anos, decide escrever tudo aquilo que guardou em sua memória a respeito da sua amizade com Lila. E faz isso como forma de contrariar o desejo de sua amiga de sumir sem deixar vestígios, algo que ela já vinha afirmando há anos.
Assim, a história narrada por Lenu descreve a infância e a adolescência das duas, desenvolvida em Nápoles num cenário pós-guerra. Em um contexto de pobreza e violência exacerbada, Helena e Raffaella enfrentam uma realidade que limita as possibilidades de vida. Por isso, em muitos momentos, a imaginação surge como fonte de esperança para um futuro melhor.
Nosso mundo era assim, cheio de palavras que matavam: crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra, torno, escombros, trabalho, bombardeio, bomba, tuberculose, supuração. Atribuo os medos inumeráveis que me acompanharam por toda a vida a esses vocábulos e àqueles anos.
Ao longo da história, diversos acontecimentos brutais são narrados com um distanciamento e uma frieza que deixam nítida a necessidade de se habituar para sobreviver às imposições daquele contexto. Em muitos momentos, Lenu afirma que “a vida era daquela forma e ponto”. Quando algum personagem apresentava uma maneira diferente de se relacionar, era como se aquilo não fosse adequado àquele bairro tão atravessado por brigas, traições, machismo e ausência de afeto.
Os trens passavam continuamente para lá dos campos, passavam carros e caminhões para cima e pra baixo na estrada, e no entanto não me lembro de nenhuma ocasião em que tenha perguntado a mim mesma, a meu pai, à professora: aonde vão esses carros, os caminhões, os trens, para qual cidade, para que mundo?
Porém, o que mais se destaca ao longo da leitura de A amiga genial é a amizade complexa construída por Lenu e Lila. Mesmo tão diferentes, algo que as duas sempre tiveram em comum era a inteligência e o desejo de estudar. Alunas-destaque em sua escola, sempre enxergaram nos estudos a possibilidade de enriquecer e experimentar outras formas de vida para além daquela a que estavam submetidas. Sentiam-se empolgadas em vivenciar aquilo que até então era invisível.
Com o início da adolescência e em meio ao turbilhão de mudanças internas e externas típicas dessa fase, Lenu e Lila seguem destinos opostos. A amizade entre as duas se constrói a partir de dualidades e extremos que fazem com que o leitor esteja a todo momento sob tensão, mesmo quando os acontecimentos narrados são os mais rotineiros. Inveja, amor, ciúme, possessão, desamparo, devoção, saudade, admiração e dependência são coisas que atravessam a todo momento a relação das duas. A franqueza com que esses sentimentos são expostos fazem com que a leitura seja ainda mais impactante e envolvente.
[…] Fiz muitas coisas em minha vida, mas jamais convicta, sempre me senti um tanto descolada de minhas próprias ações. Ao contrário, Lila desde pequena tinha […] a marca da decisão absoluta.
Uma característica marcante da história é a narrativa não-confiável de Lenu. Por ter acesso somente à perspectiva de uma das protagonistas, em muitos momentos me peguei pensando na veracidade das informações trazidas por ela, principalmente no que diz respeito aos sentimentos de Lila ou a suas intenções por trás de determinadas atitudes.
A amiga genial foi meu primeiro contato com a escrita de Elena Ferrante e confesso que me surpreendeu bastante como a autora consegue descrever sentimentos tão complexos de uma forma tão real e sincera. Ferrante consegue construir uma história diretamente atravessada por um contexto social de extrema vulnerabilidade e com características políticas bem marcantes e, ao mesmo tempo, consegue destrinchar questões particulares de maneira crua, real e sensível.
Mesmo tendo Lenu e Lila como principais, a história é repleta de personagens fundamentais e que exercem influência direta nas escolhas e nos rumos que a vida das duas tomará. A narrativa descritiva permite que o leitor se envolva de maneira muito íntima com os personagens. Também faz com que o cenário em que se passa a história se apresente de forma tão concreta que é inevitável sentir-se como se realmente estivesse ao lado das personagens, vivenciando cada acontecimento junto delas.
A amiga genial termina de maneira abrupta e cria no leitor a curiosidade em descobrir de que maneira a vida de Lenu e Lila seguirá. Em um trecho do livro, o pai de Lenu descreve Nápoles como um lugar que sempre se corta, se quebra e se refaz. Seria a amizade de Lenu e Lila da mesma maneira?