A cada dia, o aumento da concorrência torna o mercado de trabalho cada vez mais competitivo. A dificuldade crescente para se conquistar espaços influencia, até mesmo, as relações sociais. A pressão para ser o melhor e a busca pela perfeição tem se tornado constante, sendo a família fonte de grande parte destas expectativas que recaem sobre a pessoa desde a mais tenra idade, sem considerar o efeito que tamanha pressão tem sobre a saúde mental das crianças e adolescentes.
Recentemente, a Netflix introduziu em seu catálogo o drama taiwanês “Filhos do Caos” (On Children, no original), que aborda as trágicas consequências da pressão social, opressão dos pais e disfuncionalidade familiar em um mundo onde se exige cada vez mais dos jovens, sendo o avanço tecnológico um catalisador para grande parte desses conflitos.
“Filhos do Caos” é comparado, por alguns, com uma espécie de “Black Mirror” oriental. O drama possui 5 episódios, com duração média de 1h40min – um filme, praticamente. Cada episódio é uma história completa que aborda, através de diferentes perspectivas, os efeitos da pressão social nessa busca por perfeição, sendo a família sua principal fonte.
O primeiro episódio, intitulado “O Controle remoto da mamãe”, conta a história de uma mãe solteira que tem um planejamento de sucesso para o filho, mas ele não corresponde às suas expectativas. O jovem gosta de sair e se divertir com os amigos, não tem muito interesse nos estudos e adora desenhar, enchendo seus livros da escola com rascunhos. As coisas começam a mudar quando seu filho tenta enganá-la entregando um boletim falso para que assine, de forma que ela não o impeça de ir na viagem de formatura com os amigos por causa de suas notas baixas. Nesse dia, a mãe compra um controle remoto capaz de controlar a vida do filho – ela pode fazer com que ele repita o mesmo dia várias vezes seguidas, como no filme “Click”, de Adam Sandler, e se utiliza disso para forçar o filho a fazer o que ela quer. Ela o tira da escola e o matricula em um cursinho preparatório, alegando que ele estará na frente dos concorrentes porque enquanto os outros só assistem as aulas uma vez, ela fará com que ele assista a mesma aula 10 vezes, então é impossível que ele não aprenda. Se ele reclamar, ela ameaça fazer com que ele repita o mesmo dia 15, 20 vezes, então ele não tem muita manobra de escolha.
Certo dia, na biblioteca, o jovem conhece uma adorável garota que, assim como ele, gostava de desenhar e sonhava em ser artista, trazendo uma nova perspectiva de mundo para ele. Ele arquiteta um plano para não fazer a mãe repetir esse dia e passa, então, a se encontrar escondido com a menina, até que ambos iniciam um relacionamento que ele tenta a todo custo esconder de sua mãe, com medo do que ela faria se descobrisse que sua namorada foge dos padrões conservadores exigidos (a jovem tem cabelos pintados, é extrovertida e animada, sonha em estudar artes e tem uma família pouco convencional – o pai é músico e a mãe, artista).
Este episódio começa bastante lento, nos deixando um pouco entediados. Quando os dias começam a repetir e o jovem não sabe o porquê de isso acontecer ainda, se passa um tempo até ele descobrir o motivo que leva todo dia a ser o mesmo dia. Passado esse momento inicial, quando a história começa realmente a andar, você se prende à trama e se angustia junto com o personagem com as decisões tomadas pela mãe dele. É extremamente desconcertante ver a forma como ele é tratado, sendo obrigado a repetir todos os dias no mínimo 10 vezes, perdendo sua liberdade de escolha e sua autonomia, sendo controlado como se fosse um brinquedo, um objeto, e não uma pessoa. Você vê o jovem perder todos os seus amigos e ficar solitário, não tendo escolha a não ser fazer as vontades da mãe. Quando ele inicia o relacionamento com a garota, o mundo dele volta a ter um pouco mais de cores e sai da monotonia de sempre, mas, à medida que a trama faz com que o espectador se afeiçoe aos dois como casal, nos vem a preocupação do que esse relacionamento vai ocasionar no futuro – e com bastante razão essa preocupação. Esse episódio está no TOP 3 dos episódios dessa série. Se você resistir ao começo monótono, não se arrependerá de ter continuado assistindo.
No segundo episódio, “O gato e o menino”, é apresentado uma família disfuncional que se utiliza da violência como meio “educacional”. Em um contexto de violência doméstica, novamente a questão da visão de sucesso através da educação é colocada em prática – mas, dessa vez, pesados castigos físicos são o meio encontrado para forçar o filho a estudar e para puni-lo pelo seu baixo rendimento na escola. As coisas começam a mudar quando o jovem, ao adotar vários filhotes de gatinhos, descobre que pode entrar em uma dimensão paralela e, ao realizar determinada ação, ela reflete em seu máximo desempenho na vida real, tornando-o o melhor aluno da sala. O que ele não esperava, no entanto, é que essas ações teriam sérias consequências em relação a sua sanidade mental.
Este episódio me deixou bastante confusa, precisei fazer um esforço para terminar de assisti-lo porque a minha vontade era pular logo para os próximos. A violência se mostra presente em todos os âmbitos da vida do jovem protagonista: na escola, na figura de sua colega de turma meio desequilibrada, em casa, ao sofrer agressões de sua mãe e dos tutores que ela contrata para ajudá-lo a estudar, bem como por parte de seu pai em relação a sua mãe. Desejando o sucesso do filho, que seus pais acreditam que virá após muito esforço nos estudos, sua mãe julga que a violência é uma forma eficiente de discipliná-lo, não percebendo os efeitos que as agressões causam no menino, que passa a ter bastante receio de errar e cria um bloqueio em relação aos estudos – efeito contrário ao que a mãe queria. Por outro lado, é interessante notar de que forma a violência é propagada: o pai é violento com a mãe, que por sua vez é violenta com o filho e estimula que os tutores também o sejam, pois acredita que somente dessa forma ele irá aprender.
Nessa história, é mostrado que a carga de responsabilidade em relação à educação escolar dos filhos recai principalmente sobre a mãe, sendo ela culpada pelo seu desempenho – se o jovem vai mal na escola, sua mãe que não o educou direito. Além disso, é interessante perceber o quanto as famílias distanciaram-se afetivamente – em um determinado trecho, a colega de escola do jovem o abraça e diz que ele não sabe abraçar, tendo ele sido rejeitado pela mãe posteriormente quando pede um abraço dela. É bastante ambíguo, para o jovem, receber estímulos tão diferentes em relação a sua figura materna: ela diz que o ama, mas não há toques carinhosos entre os dois, abraços, momentos afetivos, o único contato que eles têm é durante as agressões. Todo esse contexto tem impacto direto na sanidade do jovem, sendo bastante interessante observar o quanto ele começa a adoecer mentalmente à medida que o tempo passa e ele consegue, finalmente, atingir as expectativas de seus pais – às custas de sua saúde mental.
O terceiro episódio, “O último dia de Molly”, conta a trajetória de uma mãe que tenta descobrir os motivos que levaram a sua filha, Molly, ao suicídio. Para isso conta com a ajuda de um equipamento, ainda em fase experimental, que permite que ela tenha acesso as memórias de sua filha. Para essa mãe, Molly tinha uma vida perfeita, era uma estudante exemplar, tinha tudo o que queria e, por isso, não entendia as razões que a levaram a tomar essa decisão. Sempre em busca de culpados, ao se colocar no lugar da filha ela começa a entender um pouco mais o próprio papel que teve, enquanto mãe, no desenrolar dos acontecimentos, desde o momento do nascimento de sua filha até a adolescência, fazendo com que a jovem percebesse como única fonte de parar o sofrimento o fim da sua própria existência.
Dentre todos, este com certeza é o meu episódio favorito. Ele retrata o luto de uma mãe pela morte trágica de uma de suas filhas e a sua busca por respostas. Esta história aborda diversas temáticas, começando pelo abandono compulsório de carreira pela mãe para se dedicar exclusivamente à criação das filhas, enquanto o pai se torna o único provedor da família; passa pelo esvaziamento das relações familiares, onde os pais alegam amar os filhos mas não se interessam em conhecê-los de fato, não dando uma chance para eles se mostrarem como realmente são e simplesmente atribuindo a imagem que querem a cada um, acreditando fortemente nessa imagem imaginária; e chega até mesmo na questão dos pais pressionarem os filhos a realizarem os próprios sonhos parentais, alegando sempre que esse caminho é o melhor, sem de fato se preocupar se são essas conquistas que seus filhos realmente almejam.
Quando eu terminei este episódio, eu tive a certeza de que muitos pais deveriam assisti-lo para perceber de que forma estão conduzindo a educação dos filhos – para realização própria, de maneira egoísta, ou para, de fato, ajudar na autodescoberta do jovem e permitir que ele tenha a liberdade de escolher seu próprio caminho. Em nome do amor, muitos pais tomam atitudes que abalam a confiança e autoestima de seus filhos, afastando-os, sem perceber, do convívio familiar, que passa a ser considerado um ambiente negativo, fonte de angústia, estresse e pressão. É muito interessante quando, ao acompanhar esta história, começamos a descobrir, junto com essa mãe, quem realmente era Molly – e como ela se sentia dentro de casa. Enquanto sua mãe se realizava pelo sucesso acadêmico da filha, a jovem se sentia cada vez mais solitária dentro de casa, lutando sozinha contra suas próprias questões e acreditando que não a amavam e nem se importavam, de fato, com ela, sendo a morte considerada uma melhor opção. Esse ponto é extremamente importante porque os pais não percebem que os filhos se sentem assim pela forma como são tratados em casa, tendo a família um papel fundamental no que diz respeito à saúde mental dos jovens, em especial nesse momento tão delicado que é a adolescência. É, realmente, um baque quando a mãe percebe que foi a maior responsável pela morte da própria filha – e, novamente, esse é apenas um reflexo do que realmente acontece na nossa sociedade.
O Quarto episódio, “O pavão”, conta a história de uma jovem de família humilde que estuda em um colégio particular de elite. Sua mãe acredita que só através dos estudos os filhos conseguirão uma vida digna e não seguirão o mesmo caminho dos pais, então ela se esforça ao máximo para conseguir pagar o colégio da filha mais velha, a protagonista, e juntar dinheiro para que o filho mais novo possa estudar nele também. Quando está no colégio, no entanto, a jovem sofre com a diferença de condição financeira dela e dos colegas, desejando poder ter dinheiro para sair com suas amigas sem se sentir inferiorizada. Em meio a esses conflitos internos, acaba conhecendo um Pavão em um dos pátios da escola – ele conversa com ela e promete realizar um desejo mediante uma troca: ele daria dinheiro para ela poder sair com as amigas para comemorar o próprio aniversário em um restaurante chique e, em troca, ela teria que dar alguma coisa para ele. Sem saber direito os termos do acordo, a garota aceita e sai para se divertir com as amigas, sem perceber que o que o pavão tirou dela valia muito mais do que ela estava disposta a oferecer.
Eu gostei bastante de perceber que, em contraste com as famílias representadas nos outros episódios, esta história do “Pavão” apresentou uma relação familiar harmoniosa e afetiva no geral, sendo seus quatro integrantes bastante unidos e preocupados uns com os outros. Este drama abordou questões referentes a ambição e as consequências de suas ações, demonstrando que o caminho mais fácil (fazer um acordo com o pavão) nem sempre é o melhor caminho – além de nos alertar a tomar cuidado com as coisas que desejamos. Este episódio traz à tona, novamente, a questão de se esforçar nos estudos para conseguir ser alguém na vida e melhorar a condição financeira sua e da sua família – neste caso, a mãe é obcecada com escolas particulares de elite, sem se importar de que forma os acontecimentos estão impactando sua filha e sem se importar com o desejo do filho mais novo, que desejava estudar em uma outra escola. Ainda assim, é muito interessante perceber a união da família para tentar resolver os problemas juntos, e de que forma todos tentam mudar a percepção da mãe para que ela entenda que o status do colégio não é mais importante do que a saúde de sua filha – sem sucesso, no entanto.
A trama do último episódio, “TDAH é necessário”, acontece em um mundo distópico onde o valor das pessoas é medido através das notas obtidas em testes aplicados em idades pré-determinadas (10, 15 e 18 anos). Aqueles que alcançam as maiores pontuações têm direito a morar em uma mansão e viver junto da elite, enquanto que aqueles que pontuam pouco são enviados para morar na “Pigeon Cage”, onde a população vive uma vida simples e a média de inteligência é baixa. Nesse mundo, as mães têm uma função: receber embriões através de fertilização in vitro, criar as crianças e educá-las, sendo as mães responsabilizadas pelo sucesso ou fracasso de seus filhos.
Este episódio conta a história de uma mãe que, após a morte de seu filho, recebe outro embrião e começa a vivenciar todo o processo de novo. Seu primeiro filho era extremamente inteligente e obteve as melhores notas nos testes, garantindo-lhes um lugar nas mansões da elite e tornando-a reconhecida dentro da sociedade como uma excelente educadora, tendo o governo concedido a ela uma “medalha de ouro”, servindo como modelo para outras mães educarem seus filhos. Sua nova filha, no entanto, não é muito inteligente e, não importa o que faça para ajudar, a jovem continua indo mal na escola. A mãe, temendo que a filha não alcance a pontuação mínima no teste, fazendo com que ambas sejam despejadas para Pigeon Cage, elabora um plano para que a filha seja diagnosticada com TDAH e não precise realizar a prova, garantindo a permanência das duas na atual mansão onde moram.
Esta trama está entre as minhas preferidas dessa série. Ela demonstra o valor que a sociedade dá para a inteligência acadêmica, ignorando as outras áreas da inteligência humana, como a inteligência corporal ou a inteligência artística, por exemplo. Essa obsessão com a “qualidade” dos genes, no entanto, é bastante cruel na medida em que aqueles que obtém uma pontuação muito baixa nos testes são considerados “defeituosos” e perdem seu direito de continuar convivendo em sociedade, sendo eliminados – fato este que se tenta manter em segredo das crianças, dos jovens e da população em geral. Além disso, traz novamente a questão da existência do amor maternal, mostrando suas duas faces, além da manipulação que os pais fazem com os filhos, visando com isso adquirir benefícios próprios. O desenrolar da trama nos deixa ansiosos para a conclusão, torcendo para que se encontre uma solução para os problemas propostos e nos fazendo acreditar na possibilidade de resistência a um sistema opressor, culminando em um final que mexe com a gente, que causa um incômodo e faz com que a gente passe um pouco mais de tempo refletindo nas implicâncias do que nos foi apresentado.
Filhos do Caos aparece como um lembrete para percebermos o quanto a nossa sociedade está ficando adoecida, especialmente no que se refere às relações familiares. Essa pressão familiar em relação aos estudos é muito forte na Ásia, sendo inclusive uma das razões pelo sucesso da série em países como o Japão, mas se reflete, também, no resto do mundo. Seja através do controle dos pais, do esvaziamento e distanciamento das relações afetivas dentro de casa, da opressão e pressão social, é difícil que o espectador comum não se identifique com nenhuma dessas situações representadas nas tramas dos episódios, seja na figura do opressor ou na do oprimido. É de extrema importância falar sobre essas questões, especialmente porque muitas vezes as famílias fecham os olhos e acreditam estar tudo bem, quando na verdade não está. Talvez, chamar seu pai ou sua mãe para assistir algum dos episódios com você seja uma boa, quem sabe depois não renda uma discussão sobre o que está acontecendo dentro da própria família. Em suma, é uma boa série, alguns episódios mais fracos do que outros, mas ela, definitivamente, vale a pena de ser assistida.
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