Sabe aqueles filmes atemporais que não importa quando você assiste, eles sempre parecerão atuais? Ela (Her) é assim, um filme de romance futurista que apresenta uma narrativa inusitada. Diante de uma separação conturbada, Theodore Twombly (interpretado por Joaquin Phoenix) se percebe completamente só. O contato que ele mantém com seus amigos é feito quase que automaticamente por uma, de certa forma, obrigação social de mantê-los. A profissão de Theodore também não é das mais comuns, ele é um escritor de cartões para ocasiões especiais sob encomenda.
O filme dirigido por Spike Jonze, embora sem data, apresenta um futurismo dissociado do que se está acostumado a ver. Não há carros voadores, roupas cinza-cintilantes ou andróides convivendo com humanos. Ele demonstra um avanço que, mesmo nos dias de hoje, é possível de ser contemplado: a hegemonia dos smartphones, dos aparelhos portáteis com conexão telemática, os video games com sensor corporal e a realidade aumentada.
Ainda que não haja uma dominação física das máquinas sobre a espécie humana – não há escravidão, revolução das máquinas ou coisa parecida de filmes apocalípticos sobre o tema – é possível perceber uma relação de dependência e a própria criação de laços, tão como a utilização dos meios tecnológicos como forma de fuga da realidade.
A obra cinematográfica começa a seguir por um caminho inesperado quando o protagonista se depara com o anúncio de um novo Sistema Operacional (SO) que prometia se adaptar completamente à realidade do usuário. O dispositivo estava munido de uma Inteligência Artificial que interagia para além das funções reativas programadas para os sistemas operacionais comuns, era quase outra pessoa dentro da telinha.
E assim o é. Theodore chega em casa ansioso e instala o programa. Durante a configuração preliminar, ele escolhe uma voz feminina para interagir com ele e, em seguida, ela começa a fazer uma busca por seus arquivos e e-mails para poder conhecê-lo. No momento em que ele pergunta se ela tem um nome, é possível notar a eficiência no processador do software, que, em segundos, lê cinco mil páginas com nomes e seus significados e se autodenomina Samantha (interpretada por Scarlett Johansson).
No decorrer da narrativa, as relações entre o protagonista e o Sistema Operacional se estreitam, ela participa da vida dele lhe oferecendo conselhos, tão como na sua escrita e parece dispor de consciência tão como aprende o significado das emoções e as reproduz de maneira vívida. Diante da solidão em que se vê, Theodore começa a desenvolver uma afeição passional por Samantha e eles se tornam um casal como qualquer outro, o que inclui atividades sexuais, mesmo que não haja, necessariamente, uma interação física.
Assim, quando Theodore relata que está se relacionando com um sistema operacional, não há nenhum estranhamento por parte de seus amigos, que conhecem casos semelhantes. Os SOs estão tão presentes nas vidas dos seus usuários quanto qualquer pessoa poderia estar. Também dessa forma, ninguém considera anormal o fato de as pessoas “terceirizarem” a expressão de suas emoções por meio de empresas de fabricação de cartões, alguns sendo clientes fiéis há anos.
Ao mesmo tempo em que o protagonista apresenta traços de solidão profunda, ele se mostra um grande observador e possui grande capacidade de empatia, conseguindo perceber em outros indivíduos características às quais pouco se presta atenção.
A composição imagética e fotográfica do filme contribui para uma percepção diferenciada das ideias futuristas incutidas nele, há um quê de sutileza nesta. Além da contraposição gritante entre objetos animados e inanimados, a utilização de cores quentes pelos personagens faz com que a atenção esteja diretamente focada nas pessoas e nas suas emoções e reações às interações que ocorrem ao longo da história, colocando os sistemas operacionais como plano secundário.
Samantha, como qualquer pessoa apaixonada, busca demonstrar sua afeição por Theodore por meio de músicas que ela mesma aprende a compor por meio de pesquisas. A capacidade do software de aprender e decodificar informações se mostra vasta. Sua evolução acompanha tamanha imensidão que Theodore se torna um simples humano, que não mais compreende seus anseios e vontades. É possível aí fazer um paralelo com o Mito da Caverna de Platão, no qual, segundo o discípulo de Sócrates, o homem teria sua libertação do mundo das coisas e poderia entrar em contato com a perfeição através do mundo das ideias. Seria, dessa vez, uma “saída da caverna” dos detentores da Inteligência Artificial.
Por conta dessa discrepância evolutiva a relação entre eles começa então a seguir para sua ultimação, também nessa ocasião o personagem principal descobre que ele não é o único homem com o qual o Sistema Operacional mantinha uma relação. Transtornado, Theodore exibe sinais de monomania e obsessão pelo SO e, em seguida, ao perambular pelas ruas da sua cidade, ele imagina que ela pode estar falando também com pessoas que o cercam.
Numa atitude resignada, ele desinstala o programa de seu computador e, diante da dependência que o sistema criou sobre tantos outros usuários, a fabricação e distribuição dele é vetada, a partir daí todos os seus protótipos são retirados do mercado.
A cena final de Ela apresenta então o retorno do protagonista para a relação estreita com outra pessoa – de carne e osso. Ele se encontra com sua amiga Amy (interpretada por Amy Adams), que também possuía um SO com o qual mantinha uma relação de amizade. O desfecho, dotado de uma sensibilidade profunda, demonstra o sobrepujo das relações humanas sobre as relações com as máquinas.
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