Bacurau é um filme brasileiro que teve uma excelente repercussão. Ele venceu o rigoroso Festival de Cannes em maio, reestabelecendo o valor do nosso cinema. Essa é uma das propostas, inclusive, da direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: criticar o esquecimento do povo brasileiro quanto a sua arte e a sua cultura.
O diretor Kleber Mendonça Filho já é conhecido por seus filmes densos e ricos em mensagens e críticas sociais, como em Aquarius e O Som ao Redor. Em Bacurau não foi diferente.
A narrativa acontece em um futuro distópico não muito distante, em uma cidade minúscula e esquecida no sertão de Pernambuco chamada Bacurau. As pessoas da cidade se reúnem para o funeral de Dona Carmelita, uma pessoa muito importante para a comunidade. Até que coisas estranhas começam a acontecer: a cidade não consta mais no mapa, drones aparecem sobrevoando a cidade e pessoas começam a morrer misteriosamente. As pessoas da cidade, então, percebem que estão sendo atacadas e encontram uma forma de se defender.
Os diretores trouxeram uma mistura bem interessante de gêneros cinematográficos. Logo de cara é possível perceber um western, nos trazendo as pessoas um pouco sujas e suadas, o chão de terra seca e a poeira sempre no ar. Na verdade essa é a característica do sertão e que foi muito bem explorada nos remetendo a esse faroeste hollywoodiano; uma pegada Mad Max, por causa da escassez de água e recursos que a cidade enfrenta; suspense, que é passado com a trilha sonora, o jogo de câmeras e, principalmente, quando as mortes misteriosas começam a acontecer; um pouco de drama; e uma comédia muito boa que surge naturalmente. Fica evidente que não era o objetivo ser engraçado. Os diálogos são bem naturais e orgânicos, mas acabam tirando boas risadas. Também trouxe um pouco de ficção científica e um pouco da violência tarantinesca.
Inicialmente o ritmo do filme é lento, mostrando para o espectador a convivência de todas as pessoas daquela cidade e, também, aprofundando alguns personagens como Teresa, interpretada por Bárbara Colen, Pacote, interpretado por Thomás Aquino, o Lunga, interpretado por Silvero Pereira, e Domingas, interpretada pela ilustre Sônia Braga. Aqui os personagens são muito complexos e não são tratados como mocinhos e vilões. As pessoas são da vida real, não existindo esse maniqueísmo. Lunga, por exemplo, era um assassino amado e aplaudido por todos, nos remetendo à história de Lampião. Vale ressaltar que a personagem principal é Bacurau como um todo e o diretor deixou isso bem claro.
O filme conta, ainda, com um elenco estrangeiro, do qual destaco Udo Kier, que interpreta Michael. Se eu contar porque esses americanos estão em Bacurau vou estragar o filme, mas posso adiantar que assistam ao filme legendado. Fica muito mais interessante o diálogo entre eles e as pessoas de Bacurau. Além disso, a dublagem foi feita para trazer um ar cômico com vozes falando português com sotaque americano.
No 2º momento o filme começa a ficar mais denso. As mensagens implícitas vão ganhando mais força e muitas deixam de ser implícitas e são como um “tapa na cara” para o espectador. O suspense é introduzido e as pessoas começam a desconfiar dos ataques, que se tratam, na verdade, de algo mais complexo. Rapidamente a cidade se organiza para se defender, o que levou ao confronto final do filme, no que acredito ser no 4º momento.
O confronto foi, para mim, o ponto defeituoso do filme. Faltou um pouco mais de ação. Os elementos implícitos foram extremamente interessantes e quem não prestar muita atenção não vai entender, mas ficou um pouco monótono para uma batalha.
Os filmes brasileiros são subestimados, principalmente por nós brasileiros. Foi necessário ele ganhar um prêmio em um festival estrangeiro de cinema para que déssemos valor. Quando entrei no cinema achei muito estranho que a sala estava cheia. Isso nunca acontece em filmes brasileiros mais cult. E não só isso. Na data que escrevo esta opinião sincera, o filme continua em cartaz, quase 1 mês após sua estreia. Normalmente só fica uma ou duas semanas no máximo. O mais interessante é que o próprio filme trata dessa desvalorização que temos da nossa arte.
Bacurau é o retrato pintado do Brasil. A produção é muito boa, as atores dão um show e a fotografia é belíssima. Mereceu o prêmio em Cannes. Foi uma tentativa eficaz de valorizar mais a nossa sétima arte, desmistificando a visão de que filme brasileiro é sempre mal produzido e ruim. Temos muita história interessante para contar, mesmo que seja de forma diferente do estilo hollywoodiano. Recomendo muito que assistam. Vale muito a pena. Tenho certeza que quem assistir com carinho vai mudar a visão que tem do cinema brasileiro.
Não tem como falar mais sem estragar as surpresas e a estranheza do filme. Por isso farei comentários mais detalhados com spoilers a partir de agora. Quem já viu pode continuar, quem não se incomoda com spoiler, continue por sua conta e risco.
ALERTA DE SPOILER!
Bacurau representa o Brasil. As pessoas da cidade são simples e humildes e, logo, subestimadas. Acabaram se tornando alvo de uma equipe de americanos que vieram à cidade para caçar as pessoas de lá por puro prazer, tratando as pessoas como animais selvagens. Eles isolam a cidade, cortam sinal de internet e de telefone e literalmente tiram a cidade do mapa. Quando o professor vai mostrar às crianças onde Bacurau fica no mapa, ela tinha desaparecido do GPS. Sim, a cidade é simples e humilde, mas eles têm acesso à internet, usam smartphones, postam em rede social… Inclusive eles têm um meio próprio de comunicação para informar quem entra e quem sai da cidade. Isso vai de encontro ao conceito que muitos têm das cidades interioranas e, principalmente, nordestinas do nosso país.
Quando dois forasteiros da região sul/sudeste do país, que trabalham para os americanos, chegam de moto à cidade, isso fica muito claro. Eles andam pela cidade com ar de superioridade, olhando em volta com desprezo. Os diretores nos remetem aos brasileiros que não se identificam com o Brasil e se acham superiores a algumas regiões do país. Na verdade, eles se identificam mais com os estrangeiros. No momento em que um dos forasteiros fala aos americanos “nós somos como vocês” o diretor foi bem literal. Eles se deram mal com essa frase.
Um momento interessante é quando uma residente de Bacurau pergunta a esses forasteiros se vieram para visitar o museu da cidade. Eles logo estranharam: “Como assim, um museu? Uma cidade tão pequena como essa tem história?”. Isso retrata justamente a negação que o povo brasileiro, de uma forma geral, tem em relação a sua própria história e cultura.
A crítica política não podia ficar de fora. O prefeito da cidade é o retrato típico dos nossos políticos. Ele aparece trazendo alguns agrados para a população da cidade em troca de votos. Entre eles, livros velhos e rasgados que o caminhão descarrega na porta da escola como lixo, comida vencida e remédios controlados tarja preta.
A cidade, então, se reúne para dividir os mantimentos trazidos. Isso mostra que são pessoas organizadas com um incrível senso de civilidade. Todos pegam o que precisam e saem, sem tentar se aproveitar e sem gerar confusão. Domingas, então, fala dos alimentos vencidos e do remédio controlado, que se tratava de uma substância que deixa a pessoa lenta e em torpor. Ninguém pega os remédios e Domingas os joga no lixo. Esse remédio representa o interesse dos governantes em manter a população passiva. E os livros velhos representam o descaso com a educação, isso ficou bem claro.
Como podem ver, são pessoas organizadas e inteligentes. Quando um drone em forma de disco voador aparece eles logo identificam como um drone que está filmando e que alguém está atacando eles. O que provavelmente a maioria dos espectadores estavam imaginando é que seria um ataque alienígena. E talvez fosse esse o objetivo dos americanos ao usar a forma de disco voador.
O simbolismo é intenso quando esses americanos aparecem. Há uma crítica ao estereótipo dado ao brasileiro, especialmente às regiões norte/nordeste, de que são pessoas inferiores, bichos do mato. É interessante que eles não diferenciam as pessoas de Bacurau e os sulistas que trabalham para eles e dizem “vocês não são brancos; vocês não são como nós” e os matam, mostrando que era apenas mais uma caça. Eles também têm um fetiche doentio por armas. Tem uma cena em que eles fuzilam um carro, matando duas pessoas, e ficam tão excitados que transam segurando suas armas. Durante o confronto final, o tiroteio acontece majoritariamente na escola. Há alusão clara à cultura do armamento americano e que estamos tentando importar.
Um desses caçadores mata uma criança, que tinha uns de 10 anos de idade, que estava brincando com uma lanterna. Aí foi uma crítica direta aos assassinatos de crianças muito comuns hoje no Brasil, principalmente por policiais. O americano “bonzinho” criticou o que matou a criança. Este se defendeu dizendo “estava escuro, ele parecia ter uns 16 anos, e a lanterna parecia uma arma”. O diretor não podia ser mais direto.
Pois bem. A população se uniu para derrotá-los. Então surge Lunga, um personagem que nos remete ao cangaço e a Lampião. Ele era um assassino que estava escondido, procurado pela polícia, mas as pessoas da cidade que sabiam onde ele estava não o entregavam. Quando a cidade se vê em perigo ele retorna. As pessoas então preparam o contra ataque. Pegam as armas do museu (esse museu é um elemento muito importante) e preparam a tocaia.
Durante o confronto as mortes, obviamente dos americanos, é bem violenta, nos remetendo ao estilo de Tarantino, com direito a crânio totalmente destruído e mãos decepadas. Inclusive Lunga arranca as cabeças dos estrangeiros, mais uma vez nos lembrando de Lampião. Ao final da chacina, o DJ da cidade começa a falar o nome dos que morreram e um dos nomes é Meirelle. Coincidência?
No final o bendito museu que é mencionado discretamente várias vezes ao longo do filme é mostrado. Ele carrega fotos e notícias do histórico da cidade com a guerra, mostrando que se tratavam de pessoas acostumadas com a luta e com o sofrimento.
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