Tenho a ideia de que toda distopia, qualquer que seja a forma de abordagem, tem como objetivo gerar um incômodo ao leitor sobre o mundo que o cerca. Seguindo outros clássicos como 1984 e Fahrenheit 451, Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, consegue êxito nessa façanha. Ele recorre a ideias bem conhecidas no âmbito da Psicologia para descrever o seu mundo distópico, o que só deixa seu livro mais real.
Nas primeiras páginas já fui tomada por um desconforto enorme pelo mundo criado por Huxley, onde ele descreve uma sociedade em que, após ter evoluído no controle da biologia, as pessoas não nascem, elas são fabricadas. Não envelhecem. A relação parental é inexistente nesse novo mundo “Fordiano”, onde as crianças são criadas no Centro de Incubação e Condicionamento – o nome do local, assim como sua função na trama, me remeteu ao famoso experimento (antiético) realizado por John Watson com o pequeno Albert. O cientista busca comprovar que toda personalidade/comportamento pode ser condicionada, mesmo que para isso se utilizem estímulos aversivos. Dessa forma, Watson condiciona de maneira sucessiva o bebê Albert, até que este desenvolve uma aversão ao rato.
A sociedade “Fordiana” tem como lema do Estado Mundial: a comunidade, a identidade, a estabilidade. Dessa forma, busca não reforçar nada que não esteja de acordo com o padrão estabelecido para a manutenção da estabilidade tão sonhada, o que faz com que seja necessário que os indivíduos condicionados tenham um padrão tanto físico quanto mental, que esteja de acordo para cada casta pertencente. Porque, para se ter um controle sobre a comunidade, é preciso que esta crie uma identidade padronizada, onde o controle é facilmente mantido pelas engrenagens do poder.
O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma.
(pág. 264)
Assim, individualidades no mundo novo não são permitidas; sequer é reforçada a ideia de estar-se só para que o sujeito não se encontre em solidão e assim seja permeado de pensamentos. Todos têm os mesmos passatempos, o que faz com que até outrem saiba quais são suas (únicas) opções de lazer. A monogamia é repugnante. Aqui, cada um pertence a todos. A solidão é impensável. Sentimentos são aterrorizantes e, por isso, evitados a todo custo. E, quando se é tomado por sentimento, seja ele qual for, você sempre pode tomar o soma, que permite uma fuga dos seus reais sentimentos e o perpetua em uma felicidade sem significados.
Toda criança é condicionada desde os primeiros anos a acreditar que é feliz, a comportar-se de acordo com a norma de conduta para manter a harmonia. Nessa sociedade industrial, onde “cada um pertence a todos” e se é descartável – mas não se percebe como tal –, poderíamos facilmente colocar esse novo mundo como a modernidade líquida que Bauman tanto fala, ao discorrer em grande parte do seu trabalho sobre a fragilidade das relações, como as pessoas são facilmente “desconectadas” uma das outras, etc.
Mãe, monogamia, romantismo (…) não é de se admirar que esses pobres pré-modernos fossem loucos, perversos e infelizes. Seu mundo não lhes permitia aceitar as coisas naturalmente, não os deixava ser sadios de espírito, virtuosos, felizes. Com suas mães e seus amantes; com suas proibições, para as quais não estavam condicionados; com suas tentações e remorsos solitários; com todas as suas doenças e intermináveis dores que os isolavam; com suas incertezas e sua pobreza – eram forçados a sentir as coisas intensamente. E, sentindo-as intensamente (intensamente e, além disso, em solidão, no isolamento e irremediavelmente individual), como poderiam ter estabilidade?
(pág. 63)
Nesse admirável mundo novo o amor é proibido e o sexo, deliberado. Abraçar os instintos é o que guia a sociedade, que trabalha a partir do princípio do prazer, não adiando nunca a sua satisfação. Permeada de desejos pelo novo, essa sociedade industrial teme qualquer tipo de sentimento porque “quando o indivíduo sente, a comunidade treme” e tende, além de perpetuar o objeto da gênese do nosso sentimento, a nos deixar vulneráveis. E existe algo mais aterrorizante que ser vulnerável ao sentir?
Portanto, temos a construção de uma sociedade que exclui a história, a arte e qualquer coisa que faça você puramente sentir. Você é impedido de ser aquele que questiona, ter um pensamento crítico sobre o mundo que o cerca. Onde você não tem “nenhum esforço excessivo da mente nem dos músculos” e a educação moral não é, nunca, de modo algum, racional. Não se deve ser.
O totalitarismo descrito em Admirável mundo novo difere de outras distopias porque não prossegue por vias totalmente opressoras. Pelo contrário, a manutenção do poder totalitário ocorre, aqui, justamente porque este não age só a partir de estímulos aversivos.
A felicidade universal mantém as engrenagens em funcionamento regular.
(pág. 273)
Está em congruência com o pensamento de Foucault, onde ele diz, em Microfísica do Poder, que “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”. Portanto, o poder age também como aquela mão que afaga; se não fosse assim, a manutenção do poder não existiria.
Huxley recorre às formas mais sutis do totalitarismo para discorrer em seu livro, uma vez que coloca este como também aquela mão que afaga. Isso acarreta um incômodo maior, por lembrarmos como sociedades totalitárias foram impostas de formas tão sutis que você não percebe até estas serem totalmente instaladas e já se perpetuarem por todo o corpo social. É mais incômodo ainda ao perceber as semelhanças com a realidade.
Como uma amante de distopias, sem dúvida alguma, esse clássico tão bem escrito por Aldous Huxley está na prateleira de favoritos. Em Admirável mundo novo, você encontra inúmeras referências e o autor também não tenta escondê-las. É aquele livro que faz lembrar da importância de sentir e ter pensamentos críticos sobre qualquer saber-poder predominante, não o tomando como verdade absoluta.
Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.
(pág. 286)
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