2021 mal começou e já temos um grande hit das séries na Netflix. Bridgerton narra a história de Daphne Bridgerton, uma nobre debutante que, ao correr o risco de perder o posto de Diamante das debutantes, realiza um pacto com o Duque de Hastings para fingirem um relacionamento e conquistarem seus objetivos: ele não quer casar e ela quer ter mais pretendentes. A série é o primeiro fruto da parceria entre a Netflix e a Shondaland, empresa de produção audiovisual de Shonda Rhimes, conhecida por criar Grey’s Anatomy e Scandal e produzir How to Get Away with Murder.
Bridgerton é uma adaptação televisiva da série de livros Os Bridgertons de Julia Quinn, passando em uma Londres fictícia no início do século XIX. A localização é fundamental e dá vários tons à série, seja pela atual, pelos figurinos e pelos valores sociais que são retratados nela. Aqui assistimos à vida da nobreza inglesa em uma Londres colorida, asséptica, em que o principal objetivo das famílias é criar suas filhas para casarem com os melhores nobres possíveis. Cabe, nesse cenário, à rainha escolher o Diamante da temporada de bailes, ou seja, a mais perfeita das candidatas a casamento para ser a mais cortejada e garantir as graças do reino. Assim, há uma vasta disputa pelos melhores partidos e, para conseguir o melhor arranjo matrimonial para a família, todos da sociedade se metem em esquemas e fofocas para mudar o rumo das decisões. Nisso surge uma misteriosa Lady Whistledown, que, em um jornal, divulga as fofocas da nobreza e manipula as opiniões da elite londrina.
Sim, isso, mesmo, tem uma forte influência de Gossip Girl. As mexidas no tabuleiro casamenteiro realizadas pelas fofocas de Lady Whistledown são imprevisíveis e podem trazer desafetos juntos, como o caso de Daphne e o Duque, além de causar grandes reviravoltas e, claro, a busca para saber a identidade da maior fofoqueira londrina. Se a comparação com Gossip Girl é acertada, já a comparação com Orgulho e Preconceito de Jane Austen é exagerada. Ainda que se passe no mesmo século, há uma maior similaridade com Adoráveis Mulheres ao se tratar mais acidamente sobre os papéis das mulheres na sociedade e, especialmente, na dinâmica familiar nesse período. Temos uma versão da Jo Marsh e da Amy Marsh, apesar de a ordem de nascimento estar de cabeça para baixo. Além da semelhança entre os arquétipos dessas duas personagens, a dinâmica familiar é repetida em Bridgerton, só que com esteróides: os Marsh são 4 filhas em uma casa, os Bridgerton são 8 filhos (4 mulheres e 4 homens), o que gera uma comparação mais automática sobre a questão do papel de gênero na série.
A trama gira em torno de casamentos e eventos sociais (bailes) e debate, majoritariamente, os problemas femininos da época, com reflexos até hoje: destino das mulheres, pressão da sociedade que acomete a todos, tédio e vida da nobreza (pessoas que não vivem do trabalho). O primeiro ponto é que o destino das mulheres é traçado desde o momento em que nascem: são instrumentos de reprodução e barganha entre famílias. Após o casamento, o papel delas é gerir/cuidar do lar e preparar seus filhos para serem administradores ou trabalharem recompensados financeiramente e criar suas filhas para serem mães e trabalharem no lar. Isso tudo com uma criação em que, ainda que sejam ensinadas a serem mães e aprenderem artes eruditas (música, costura e literatura), as mulheres NADA sabem sobre sexo ou ciências, por serem grandes tabus. Essa questão gera a pressão social clara em vários pontos, principalmente na própria questão do papel social relacionado ao gênero, na impossibilidade de a mulher seguir um outro destino e na impossibilidade de os nobres escolherem seus próprios destinos — seja pelo dever ou pela honra da família. Isso, é importante lembrar, acontece em um cenário desigual, em que toda energia gasta pela nobreza nessas decisões matrimoniais é possível graças a eles terem tempo disponível para tal, cabendo aos plebeus trabalharem.
Por ser uma série em que o cerne são as personagens femininas, temos um núcleo de personagens que, por mais que naquela sociedade seriam coadjuvantes, aqui são nossas protagonistas. O papel masculino é levado ao segundo plano, mostrando quem realmente tocava ou equilibrava os lares, cabendo aos homens, em geral, apenas a palavra final ou apenas os louros, sendo de suas mães ou esposas os reais méritos. Além disso, as figuras paternas que têm mais tempo de tela são pessoas com fortes defeitos, como o Duque de Hastings pai e o senhor Featherington: um é um perfeccionista egoísta que renega o filho e esposa; o outro, um pai ausente que gasta toda a grana da família em apostas. Esse retrato é certamente acertado em uma realidade em que a figura paterna não é enaltecida pelo afeto e sim pela rispidez e frieza. Os únicos pais que aparecem de modo positivo são o senhor Bridgerton, que já está morto, e Mondrich, que não é nobre.
Os estigmas dos valores sociais da época são uma vileza que, assim como o que temos hoje, ao mesmo tempo em que as personagens sofrem também os reproduzem. Não faltam exemplos disso, mas, como principal, temos Anthony Bridgerton e seu relacionamento com a cantora Siena. Por ela não ser nobre e virgem, eles não podem assumir o relacionamento, causando uma forte dor e sofrimento para ambos. Entretanto, ao buscar um pretendente para sua irmã, ele tenta encontrar o seu exato oposto e impor à sua irmã sua mesma prisão. Se ele não pode tomar a decisão sobre com quem viver, ela também não.
Tudo isso acontece em um cenário lúdico, excessivamente ensolarado e colorido, cheio de roupas pomposas. É uma Inglaterra imaginária, onde o racismo foi superado (presença de não-brancos na sociedade nobre sem nenhum preconceito) e que foi resolvido com o casamento do rei com a rainha, que é preta. Passamos a maior parte da série na zona rica de Londres e, em alguns momentos, no interior do país. A fotografia é muito boa, mas o cenário também favorece, já que é filmado em campos abertos no verão ou em castelos muito bem conservados. Assistindo, você sente o valor de produção, sente que o dinheiro foi bem empregado. A direção é interessante, mas não brilha. A trilha sonora é de uma excelente sacada que conversa muito com a série: algo de época mas com pegada atual. Ou seja, você escutará Maroon 5 em violoncelo em bailes junto com Vivaldi.
Quanto ao roteiro, há muita inconsistência. Personagens e linhas narrativas que prometem são abandonadas e esquecidas sem vislumbre de ganchos. A primeira é a nossa Jo Marsh de Bridgerton, Eloise, a segunda filha da família, que não quer seguir o padrão de casamento e sonha em estudar na Universidade, algo muito distante. Uma personagem com quem você se identifica na primeira cena em que aparece, mas que fica relegada a tentar descobrir quem é Lady Whistledown, algo que perde sentido e ainda o espectador descobre antes dela. É triste essa decisão, pois poderíamos ter visto um bom desenvolvimento de conflitos com a sociedade e o que vimos é ela jogada de canto em algo que vai para lugar algum.
Outra parte mal-desenvolvida da história é o Duque, Simon Basset. O primeiro problema do arco do Simon é em relação ao seu pai, seu arqui-inimigo. Vemos um flashback sobre a relação dos dois — do jeito que Shonda gosta — para entendermos de onde vem esse ódio que o fez prometer nunca ter filhos ou se casar. No fim, descobrimos que é pela ausência do pai e suas críticas na infância. Não que isso não seja traumatizante, é claro, mas faltou substância para comprarmos mais esse ódio. Nem a Daphne comprou. Ele também tem um problema de roteiro: a preocupação que tem com suas terras, a pobreza na produção de seus plebeus e como melhorar a vida dos que vivem lá é algo que é abandonado no final e deixa de ser citado.
**Alerta de gatilho**
Há duas polêmicas em Bridgerton em relação ao seu conteúdo sexual. A primeira é sobre a quantidade de cenas de sexo que ocorrem. Elas surgem logo no início da série, mas ganham força a partir do episódio 4 e ficam mais duradouras e intensas. Quem vai imaginando que verá um soft porn irá se decepcionar, já que não é esse o intuito da série. São as tradicionais cenas de música alta, respiração ofegante, gemidos e sugestão de movimentos, sendo recomendado não assistir em volume alto com alguém que não esteja vendo para não pensarem que você realmente está vendo um soft porn. As cenas servem para dar a sensação de epítome e realização da tensão sexual entre os personagens e força nas repetidas vezes em que realizam o ato, como recém-casados esbanjando amor. Aqui há um problema, pois quando brigam não transam nem se falam e quando estão de bem só transam. Enfim, algo exagerado que poderia ser também posto com diálogos e momentos do casal principal além de repetidas cenas de sexo.
E a segunda e principal polêmica é a questão do estupro de Daphne em relação ao Duque. É uma cena incômoda, já que eles praticavam coito interrompido, evitando ter filhos. Quando Daphne descobre que, para ter filhos, é preciso que ele finalize dentro, ela o prende em suas pernas e não o deixa sair sem que tenha expelido sua secreção nela. O debate pode ser extenso, mas importante ponto é que estupro pode acontecer mesmo durante o ato quando uma das partes não deseja continuar e a outra a força. Não é algo bonito e não deveria ser romantizado.
**Alerta de gatilho**
Sobre as atuações, é preciso se acostumar, pois é tudo muito exagerado. O sotaque, a imponência, a imposição de voz. Se o ator/atriz não for competente, pode parecer artificial ou canastrão demais e, nesse ponto, temos atrizes que fazem um ótimo trabalho. Polly Walker (Portia Featherington) é sem dúvida a melhor dentre os artistas da produção, já Ruth Gemmel (Violet Bridgerton) traz uma mãe doce e protetora muito bem realizada. Nicola Coughlan (Pen Featherington) traz a dor de quem não se encaixa nos padrões da época, a ternura da juventude, a raiva da vingança e a face do arrependimento de uma maneira brilhante e sendo uma atriz tão jovem. Também vale destacar Sabrina Barllett (Siena) que, mesmo não sendo protagonista, sempre rouba as cenas e tem uma excelente expressão. Vale mencionar Ruby Baker (Marina Thompson), Martins Imhangbe (Will Mondrich) e a protagonista Phoebe Dynevor (Daphne Bridgerton) como atuações muito boas, que trazem emoção.
Entretanto, é preciso falar de Regé-Jean Page (Simon Basset, o Duque). Muitas pessoas se sentiram seduzidas e apaixonadas pelo Duque e isso é mérito e também estilo de casting das séries da Shonda Rhmes: ninguém é feio e geralmente os atores têm um bom carisma, mas também são atores ruins. Nada contra o Regé-Jean, mas nessa primeira temporada ele tem apenas duas expressões: emburrado-petulante e sedutor-olho cerrado. De fato, talvez seja um dos mais bonitos do elenco e chama atenção, mas sua dificuldade de atuar é gritante quando tem de parecer furioso e indignado — ou mostrar, na realidade, qualquer sentimento que não seja tentativa de sedução. Pontua-se também a fraca atuação dos meninos Bridgerton, especialmente o do irmão do meio, que só tem a expressão bocó-feliz.
Em geral, Bridgerton é um novelão de época que vai arrebatar seu tédio. É muito fácil de maratonar e ver em uma sentada, já que a primeira temporada tem apenas 8 episódios de 1 hora. É uma trama direta, cada episódio é bem fechado e amarradinho. O que peca são as atuações e não aprofundar devidamente em questões que levanta em diálogos e abandona. Isso fez sentir, no final da temporada, que não há praticamente nenhum gancho para a segunda. É uma série “lugar comum”, que trará conforto por ser leve, despretensiosa narrativamente e sem grandes conflitos.
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