Cidade Invisível (Netflix, 2021) é uma série brasileira de fantasia dirigida por Carlos Saldanha, que tem no currículo trabalhos como A Era do Gelo (2002, 2006 e 2009), Robôs (2005), Rio (2011 e 2014) e O Touro Ferdinando (2017) e que se arrisca pela primeira vez como showrunner de uma série live action. A obra também tem como roteiristas Raphael Draccon e Carolina Munhóz, que são destaques da literatura fantástica nacional e, em Cidade Invisível, trazem como principal elemento da história o nosso folclore.
O personagem principal da série é o detetive Eric (Marco Pigossi) da Delegacia Ambiental do Rio de Janeiro, que sofre um grande trauma familiar durante as comemorações da festa junina na Vila Toré, uma localidade fictícia habitada por uma comunidade de pescadores.
Pouco tempo depois, Eric se depara com o estranho aparecimento de um animal morto em uma praia do Rio. A investigação desse caso passa a ficar cada vez mais estranha quando ele percebe conexões com sua perda familiar, além de passar a ter contato com seres míticos do nosso folclore. Acredito que este seja o grande ponto forte da obra, já que, mesmo sabendo de toda a força e riqueza de sua cultura, o Brasil não costuma apostar em narrativas fantásticas que exaltem toda a potencialidade de nossas tradições populares.
E foi justamente por isso que a série conseguiu fisgar tanta gente (inclusive a mim), chegando a ficar no top 10 de séries mais vistas em 60 países. É claro que a mistura de suspense policial com elementos fantásticos ou sobrenaturais é intrigante por si só, mas o trunfo de Cidade Invisível foi resgatar essas histórias com uma abordagem mais adulta.
Semelhante à proposta de American Gods (Amazon Prime Video), a produção brasileira retrata como os nossos seres folclóricos se adaptaram à contemporaneidade e como vivem suas vidas em uma grande cidade como o Rio de Janeiro.
Para mim (e tenho certeza que para muitas outras pessoas), isso é inovador, no sentido de que não conheço outras obras audiovisuais que abordem nosso folclore dessa maneira. A primeira e única referência que me vem à cabeça é o Sitio do Picapau Amarelo, que já teve três versões para a televisão: a primeira exibida pela TV Tupi, entre 1952 e 1963; a segunda pela TV Globo, entre 1977 e 1986; e a terceira, entre 2001 e 2007. No entanto, todas são baseadas nos livros infantis de Monteiro Lobato.
Por isso, ter a oportunidade de rever muitos desses personagens ganharem vida em uma plataforma de streaming mundial como a Netflix foi um motivo de orgulho, tanto pela minha paixão de infância pelo Saci, Curupira, Iara, Cuca e outros, quanto pela possibilidade de me reencontrar com eles beirando os 26 anos.
No entanto, mesmo que muitas pessoas ressaltem a abordagem mais sombria desses personagens na trama, acredito que ela poderia ser muito maior, principalmente em relação à Cuca (Alessandra Negrini), que na trama ganha o nome de Inês. Não que eu tenha reprovado a atuação ou a estética da personagem, que surpreendentemente ficou bacana — mesmo não tendo a famosa cara de jacaré e peruca loira que vimos no Sítio do Picapau Amarelo (tradição é tradição) —, mas sinto que ela poderia soar mais ameaçadora ou, ao menos, mais imponente, ainda que não seja a vilã da história.
Até rolou uma química legal entre a personagem e a Alessandra Negrini, já que ambas parecem nunca envelhecer, mas a constante carinha de boa moça e voz mansa da atriz não costumam provocar grandes momentos de tensão na trama e nem a potencialidade de sua magia fica muito clara.
Em Desalma (Globoplay), por exemplo, Cássia Kis, que interpretou a bruxa Haia, soube transmitir um tom muito mais ameaçador, mesmo que sequer tenha precisado levantar o tom de voz, ou utilizado uma maquiagem muito carregada. Na verdade, chega até ser difícil entender por que a Cuca é tão temida pelo restante do grupo na série. Em alguns momentos, parece ser por temor, em outros por um sentimento de gratidão que não é muito bem explicado.
Outra questão que me incomodou um pouco foi como a origem desses personagens míticos foi tratada de uma maneira superficial, algo que poderia ter se resolvido com poucos minutos a mais. Por exemplo, todos se tornaram entes míticos após passarem por uma determinada tragédia, mas o que havia de especial neles ou no lugar para que se tornassem esses seres?
Já o ponto forte é que, mesmo que existam diversas origens para cada personagem, isso muitas vezes foi resolvido fazendo algumas junções dessas diferentes versões, o que acabou dando liga. Além disso, a história de cada personagem mostra a diversidade e a riqueza da cultura brasileira, enfatizando a origem indígena do Curupira (Fábio Lago) ou ibérica da Cuca, e até mesmo o Saci (Wesley Guimarães) como fruto da chegada dos africanos que foram escravizados no país. E ainda conheci um novo personagem do folclore brasileiro, o Tutu, interpretado por Jimmy London, ex-vocalista da banda Matanza. E apesar de ter gostado da Iara, ou Camila, interpretada por Jessica Córes, prefiro sua origem indígena, mas isso talvez tenha mais a ver com o meu gosto pessoal do que com um problema da série.
Também senti falta, nessa história, de se passar no Norte do país, onde também se originaram algumas dessas lendas — ainda que a cidade do Rio de Janeiro não tenha sido mostrada de forma estereotipada, o que já é mais um ponto positivo. Em relação à parte técnica, tanto os efeitos especiais quanto a fotografia e a trilha sonora são operantes. Ou seja, não decepcionam, mas também não impressionam.
Já a trama traz algumas questões bastante debatidas, como o embate entre o progresso e a preservação ambiental e cultural, mas de maneira pouco inovadora. O vilão, Corpo Seco (Eduardo Chagas) também não causa grande empolgação e aparece na maior parte do tempo como uma ameaça espectral, não criando qualquer tipo de relação entre o personagem e os espectadores. Resumidamente, é um vilão mal trabalhado, sem profundidade e com uma motivação pouco convincente.
Apesar disso, Cidade Invisível consegue realizar um resgate e uma exaltação satisfatória de nossa cultura e de nosso folclore, como poucas vezes vi em outras produções. Prendeu a minha atenção até o último episódio e me deixou curioso sobre o futuro da série numa provável segunda temporada.
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