Olhar para o Cinema Nacional é olhar diretamente para nossa própria identidade e cultura. É entender e se conectar melhor do que qualquer outro povo do planeta com o que está sendo transmitido daquele retrato tupiniquim. É se deparar com um filme que tem o nosso sotaque e por vezes exibe lugares que você já visitou ou que fazem parte do seu cotidiano. Além do mais, assistir ao filme sem a necessidade de legendas e, consequentemente, ter maior espectro visual do que é representado. Tudo isso aguça o sentimento de todo brasileiro e escreve no coração de cada brasileirinho aquilo que nenhum homem deveria viver sem: a arte!
Para celebrar o Dia do Cinema Brasileiro, nada mais combina com a data do que assistir a bons filmes nacionais. O Cinema Nacional teve seu início lá na década de 1920 e passou por movimentos importantes – como o cinema novo – que corroboraram com todo arsenal singular de produções brasileiras que temos em mãos. Nosso acervo é internacionalmente conhecido, mas por vezes é esquecido pelo próprio povo que é o fator preponderante de qualquer escrita de roteiro e direção.
Mas, para guiar você em um tour entre as escolas e olhares daqueles que produzem o mais sincero cinema nacional, eu trouxe para o Puxadinho alguns dos filmes (dos mais antigos aos mais novos) que são pouco conhecidos entre o mainstream brasileiro, mas que são registros preciosos que precisam ser reverberados ao povo. Que a arte que imita a vida possa então conectar o Brasil com os brasileiros.
1. Orfeu Negro (1959)
Baseado na peça teatral Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes, e com direção do Marcel Camus, o enredo é inspirado na história da mitologia grega de Orfeu e Eurídice. A adaptação ambientou a obra em uma favela do Rio de Janeiro, na época do Carnaval. Imagine o que pode resultar dessa mistura de mitologia grega, cultura carioca e Vinícius de Moraes. O filme explora as cores estonteantes do Carnaval do Rio de Janeiro, que combina muito bem com a beleza “brasileira” da atriz americana Marpessa Dawn, que dá vida a Eurídice, enquanto ambienta o drama vivido entre ela e Orfeu.
Da trilha sonora, assinada por Tom Jobim e Luiz Bonfá, nem precisa se comentar muito – além do mais, não creio que exista algo ruim já feito pelo Tom Jobim. Outra curiosidade é que esse filme foi a primeira produção de língua portuguesa a conquistar o Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro em 1960.
Esse filme teve outra versão sua gravado em 1999 com o nome de Orfeu. Os atores que interpretaram Orfeu e Eurídice foram Toni Garrido e Patrícia França, respectivamente. A direção ficou com o Cacá Diegues e a trilha sonora foi assinada por ninguém menos que Caetano Veloso.
Com certeza foi um marco inicial para as dezenas de filmes brasileiros, famosos ou não, que possuem a favela como pano de fundo para suas histórias.
2. Terra em Transe (1967)
Glauber Rocha tem uma importante participação no cinema brasileiro. Ele iniciou um movimento cinematográfico chamado Cinema Novo, destacado pela sua ênfase na (des)igualdade social que foi proeminente no Brasil durante os anos 1960 e 1970.
O filme retrata uma república fictícia chamada Eldorado e as relações políticas entre vereadores, senadores, juízes e governadores que, apoiados por uma política populista e progressista, não conseguem cumprir suas promessas. Isso acontece devido ao controle das forças econômicas locais que os financiaram. Glauber era conhecido por ser um diretor que atacava tanto a esquerda como a direita e, quase como um profeta, representa, mais de 50 anos antes, um pouquinho da política brasileira atual.
A trilha sonora, assinada por Sérgio Ricardo, dá tom ao filme e evidencia o que os tropicalistas tentavam combater com a música. Glauber Rocha foi um dos maiores diretores brasileiros de todos os tempos.
3. 2 Coelhos (2012)
Jeitinho Brasileiro, política, corrupção e ação. Essa fórmula é o que dá tom ao filme 2 Coelhos, escrito e dirigido por Afonso Poyart. Com roteiros paralelos e qualidade técnica uida a músicas pesadas, esse longa consegue juntar muitos universos e muitas referências em um único lugar. Cenas que parecem ter saído de um jogo, slow motion, monstros, histórias em quadrinhos e cenas de ação mais tradicionais fazem com que 2 Coelhos fuja bastante do padrão do gênero, flertando com coisas que não são comumente misturadas, mas fazem muito sentido aqui.
4. Que Horas ela Volta? (2015)
Regina Casé. Quem a conhece dos inúmeros programas populares com forte apelo de nicho não imagina a grande atriz que ela é. A sensação que se tem depois de assistir a esse filme é: “que filme lindo, que delicadeza para tratar de um tema tão complexo”.
Isso tudo se deve à atuação de Regina e à direção da Anna Muylaert (olha as mulheres dirigindo filmes aí!). O longa trata dos conflitos que acontecem entre a empregada doméstica Val (Regina Casé) e seus patrões de classe média alta, criticando as desigualdades da sociedade brasileira.
Uma sugestão: prepare o lenço, sente, e assista a essa obra-prima do cinema nacional.
5. O Palhaço (2011)
Aqui a diversão é metaforicamente doce em todo plano do filme. Dirigido e estrelado por Selton Mello (que, aliás, é um dos melhores atores brasileiros desse século e infelizmente o acho subvalorizado), conta a história de Benjamim e seu pai Valdemar (Paulo José, outro grande ator), dois palhaços que trabalham num circo mambembe de sua propriedade nos anos 70. Cansado, Benjamim resolve abandonar o trabalho como palhaço para trabalhar em uma empresa numa cidade distante, e isso afeta a vida de todos ao redor.
Essa história foi coescrita pelo próprio Selton Mello depois de viver uma crise existencial na sua carreira de ator, e então transpassada para o papel que ele mesmo interpreta como palhaço.
Esse filme deveria estar em qualquer grande lista sobre melhores filmes nacionais, e você deveria olhar de forma diferente para o Selton como ator, roteirista e diretor.
6. Abril Despedaçado (2001)
Quem só conhece Rodrigo Santoro dos filmes Hollywoodianos como 300 e Ben-Hur não sabe em que esse excepcional ator contracenou aqui no Brasil antes de ter o rostinho estampado nos cartazes americanos mundo afora. E Abril Despedaçado é somente uma dessa ricas obras. O filme se passa em 1910 no meio do sertão nordestino, onde Tonho (vivido por Rodrigo) é um jovem de vinte anos de idade, filho do meio de uma família pobre de fazendeiros, a família Breves. O filme todo é mostrado como uma disputa sangrenta e revanchista entre famílias e suas lutas por terras.
A atuação de Santoro representa o cansaço de mortes e lutas sem sentido, da não escassa pobreza e do sentido da vida do pobre no Nordeste. E olha, não é fácil representar tudo isso em um personagem com várias camadas que são desabrochadas ao longo do filme.
A direção é do Walter Salles, que tem um olhar único para representar esse bucolismo do sertão e de terras distantes. Ele consegue aqui realçar os elementos característicos da paisagem onde o filme se passa.
Aqui fica nossa menção honrosa a Central do Brasil, também dirigido por Salles, e Bicho de sete cabeças, outro excelente filme do Rodrigo Santoro.
7. Chatô, o Rei do Brasil (2015)
Talvez esse filme esteja aqui mais pela relevância representativa do que tanto em relação a sua qualidade técnica. Chatô vem de Assis Chateaubriand, paraibano magnata da comunicação e pioneiro da televisão no Brasil. A vida de Chatô é deveras caricaturizada na atuação de Marco Ricca. Chatô é um mulherengo, beberrão, que usa muito da ironia e do deboche no trato com as pessoas.
O aspecto mais interessante desse filme é a perspectiva que o diretor Guilherme Fontes teve ao tratar da representação cinematográfica do Assis Chateaubriand. Não é um filme biográfico como estamos acostumados a ver por aí. Guilherme representa e analisa a vida de Chateaubriand a partir de um AVC, que o faz delirar com um julgamento transmitido pela TV em pleno horário nobre de domingo, onde antigos amores e desafetos se unem para o acerto de contas.
O filme pode ser assistido na Netflix mais próxima de você.
8. O Menino e o Mundo (2013)
Animação Brasileira de Qualidade? Aqui também temos!
Cuca é um menino que vive em um mundo distante e parte em busca de trabalho na desconhecida capital. Durante sua jornada, Cuca descobre uma sociedade marcada pela pobreza, exploração de trabalhadores e falta de perspectivas.
Novamente o aspecto da desigualdade social é tratado pelo cinema brasileiro, dessa vez com a sutileza de uma animação. Os brasileiros podem estar desacostumados a verem animações brasileiras com cara de Brasil, e eu lhe garanto que aqui você vai se sentir contemplado. A direção é do animador Alê Abreu, que utilizou de técnicas com giz de cera e pinturas para idear o imaginário do filme.
Dois detalhes são dignos de nota. Os diálogos do filme foram gravados de uma forma ininteligível, o que faz realçar, quase como um cinema mudo, as interações entre os personagens. Outra curiosidade é que o filme foi um dos indicados a Melhor Filme de Animação na edição do Oscar 2016. Vale muito a pena assistir!
9. O Lobo Atrás da Porta (2013)
Chegando aos suspenses brasileiros de histórias reais brasileiras, temos O Lobo Atrás da Porta, baseado num crime acontecido no Rio de Janeiro em 1960, onde Neyde Maria Maia Lopes (conhecida como a Fera da Penha) sequestrou e assassinou uma criança de 4 anos. O crime chocou a sociedade da época, e foi amplamente divulgado pela mídia.
O crime teve motivações amorosas e extraconjugais. Para não dar mais spoilers, é bom que você vá lá assistir e nem pesquise antes no Google sobre o crime. O elenco, formado por um triângulo amoroso entre Leandra Leal, Fabiula Nascimento e Milhem Cortaz, dá o tom ao filme e se apoia numa direção com longas sequências. O diretor estreante Fernando Coimbra entrega um dos melhores suspenses brasileiros do século XXI, mesmo com a dificuldade do baixo orçamento.
10. O Som ao Redor (2012)
Quem foi ao cinema em 2019 para assistir a Bacurau ficou bestificado com o que viu. Kleber Mendonça Filho foi cirúrgico na direção desse longa. Entretanto, muita gente que não o conhecia, ou apenas o conhecia por Aquarius (2016), quase não sabia desse filme que inaugurou o diretor à frente de longas.
Recifense que é, Kleber ancorou esse filme na paisagem da cidade do Recife, e é por ela mesma que o enredo do filme se desenvolve. A presença de uma espécie de milícia em uma rua de classe média alta do Recife afeta a vida dos moradores locais. Alguns acham que isso traz segurança, e outros acham subversivo. Todo esse clima de disputa gera uma tensão criada pelo diretor através do excesso de tomadas sem som. Kleber trabalha muito bem essa criação do suspense, que vai sendo desenrolado durante toda a trama.
O bonito daqui é que os atores são, em sua maioria, pernambucanos, e não omitem o sotaque, nem tentam disfarçá-lo para fazer um filme “esteticamente mais bonito”. A impressão que se tem a partir daí – principalmente para quem é nordestino – é a sensação de se estar acompanhando dramas da vida real. Tudo é muito nítido, porque nenhuma singularidade é ocultada.
Para nosso deleite, Kleber Mendonça Filho já faz parte do panteão de grandes diretores do cinema brasileiro. Se fomos assistir sequencialmente a O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, vamos perceber o porquê.
Bom, é isso! Final do caminho. Aconselho fortemente que você assista a pelo menos algum dos filmes da lista acima, o que mais te chamar atenção. Assista e depois pesquise mais filmes daquele estilo ou diretor, e continue assistindo. Dê espaço ao filme brasileiro, porque o que produzimos aqui é bom e a lista acima só prova isso.
Até mais!
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