O álbum mais recente do Nightwish, Human. :||: Nature., foi lançado em abril de 2020, já em meio à pandemia de Covid-19, e todos os shows planejados há meses tiveram que ser adiados por tempo indeterminado. Mas a banda não queria mesmo deixar todo esse tempo passar em branco e, em 17 de dezembro, anunciou dois shows especiais, transmitidos online para todo o mundo. O evento foi chamado de An Evening with Nightwish in a Virtual World e aconteceu no último final de semana de maio.
Originalmente marcados para 12 e 13 de março, os shows foram adiados para 28 e 29 de maio devido a mudanças na programação da banda e, provavelmente, à saída do baixista-vocalista Marko Hietala em janeiro. Os ingressos foram vendidos separadamente para as duas noites, mas também estavam disponíveis em vários pacotes diferentes. Cada show tinha um público-alvo em mente: o da sexta-feira era dedicado aos fãs da Europa e de regiões mais orientais (por isso, aconteceu às 15h daqui) e o do sábado, ao continente americano (transmitido às 21h de Brasília).
A proposta do Nightwish era ousada, mas também era exatamente o que se esperaria da banda: grandiosa e diferente. Sim, muitos artistas fizeram shows transmitidos ao vivo. E mais de um bom artista ou grupo fez shows em dois dias seguidos. O grupo sul-coreano BTS, por exemplo, apresentou assim sua turnê do álbum Map of the Soul: 7, também cancelada pela pandemia, com direito a participação da plateia virtual. Mas o mais diferente dos shows do Nightwish é que aconteceriam em um local virtual remoto chamado The Islanders Arms, cujas portas seriam abertas exclusivamente para eles.
Se você gosta também de música pop, imagino o que pode estar pensando: o RBD também usou efeitos especiais e olha no que deu… Felizmente, desde a primeira prévia, ficou evidente que a qualidade dos efeitos seria infinitamente superior à do sexteto-temporariamente-quarteto — e foi. É impressionante olhar as fotos dos ensaios e pensar que quase nada visual da versão final de An Evening with Nightwish in a Virtual World está de fato lá.
A nova formação
Além de ser um show remoto com todos aqueles efeitos especiais, o Nightwish tinha um desafio ainda maior em mãos: como substituir Marko Hietala?
Trocas de membros, inclusive vocalistas, não são inéditas na banda, que já causou grande comoção principalmente ao demitir sua vocalista original, a lendária Tarja Turunen. Apesar disso, a música se manteve sempre em evolução e, com a terceira e atual vocalista Floor Jansen (After Forever), pode-se dizer que o Nightwish estava em sua melhor fase e formação definitiva. Mas essa formação definitiva incluía, e de certa forma dependia de, Marko Hietala. Tuomas Holopainen, o líder da banda, já tinha recentemente declarado que decidiu explorar mais o potencial de seus três excelentes vocalistas (Floor, Marko, e o multi-instrumentista Troy Donockley, responsável pelos instrumentos de sopro e algumas cordas). Mas e agora?
A solução encontrada pelo Nightwish foi chamar o baixista Jukka Kosinen (também do Wintersun, como o baterista Kai Hahto) para este e todos os shows da turnê de Human. :||: Nature. Os vocais que antes eram de Marko passam a ser todos de Troy ou divididos entre Troy e Floor.
E eles mais que dão conta do recado.
Os shows
O dirigível chega a The Islanders Arms ao som da introdução de Music e, ao entrar, a banda já emenda em Noise, ambas do álbum mais recente Human. :||: Nature. e inéditas ao vivo. Eu, particularmente, gostaria muito de ter visto Music inteira, mas o resultado ainda ficou incrível, porque o forte do Nightwish sempre foi apresentar suas músicas ao vivo, por melhores que sejam os álbuns. E Noise é tão vibrante quanto se esperaria que fosse.
Depois, a banda surpreende com Planet Hell, do álbum Once, que não tinha sido tocada ao vivo desde a turnê do Imaginaerum em 2012 e 2013 — e, antes disso, desde a turnê do próprio Once em 2004 e 2005. É uma grata surpresa, pois a letra infelizmente reflete o sentimento desolador de viver nesse mundo nos últimos anos. O individualismo (“salve-se e deixe que sofram”), os desastres (“a Mãe Natureza assassinada”), a falta de humanidade (“um milhão de crianças lutando pela vida em risco, pela esperança além do horizonte”). Na versão original, Marko dividia os vocais com Tarja, e aqui Floor canta a música inteira sozinha.
A estrutura do show foi a mesma nas duas noites, mas houve diferenças em alguns momentos específicos para manter a variedade. Na primeira noite, a terceira música é a estreia ao vivo de Tribal, que questiona costumes, tradições e o “comportamento de manada”. Na segunda, foi a vez de Alpenglow, uma das minhas favoritas do Endless Forms Most Beautiful, que tem uma pegada parecida com as partes cantadas de The Greatest Show on Earth.
Quando Floor anuncia que “o inverno está chegando”, The Islanders Arms começa a esfriar e a banda toca o festivo single Élan, também do álbum de 2015. A neve toma toda a paisagem para Storytime, single do Imaginaerum, de 2011. Na primeira noite, depois dessa dobradinha de singles, entra She is My Sin, do Wishmaster, de 2000. Na segunda, foi a vez de How’s the Heart?, do Human. :||: Nature., com a banda completa — ela também apareceu mais adiante na primeira noite, mas em versão acústica.
Harvest, primeira faixa em que Troy assume os vocais principais, estreia ao vivo em seguida. Entre ela e a já clássica I Want My Tears Back, que colocam o público para dançar, é a vez de uma faixa mais pesada. Essa vaga é preenchida por 7 Days to the Wolves na primeira noite e pela teatral Dark Chest of Wonders na segunda. Depois, é a vez de mais clássicos: Bless the Child (primeira noite), Ever Dream (segunda noite) e Nemo. Esta última, por mais que seja a única música que muitos conhecem e por mais que possa parecer “cansada” devido ao enorme sucesso que fez, nunca chega a de fato cansar. Toda vez que ouço, especialmente ao vivo, acho que vou enjoar dela, entretanto só entendo mais e mais todo aquele sucesso.
O momento mais calmo das duas noites, respectivamente, fica por conta de How’s the Heart? em versão acústica e Sleeping Sun. É impossível errar com Sleeping Sun, especialmente na voz de Floor, mas o restante da banda faz falta em How’s the Heart? — a versão acústica passa longe de ser ruim, mas ainda bem que foi a versão completa na segunda noite. Talvez fosse interessante incluir Procession nessa parte do show.
E a última diferença entre as duas noites é em mais duas inéditas: a aguardada Shoemaker na primeira noite e a teatral Pan, favorita do guitarrista Emppu Vuorinen, na segunda. Shoemaker é absolutamente arrepiante e deve ser uma experiência fenomenal ver isso ao vivo, presencialmente, quando houver algum tipo de normalidade outra vez.
A sequência final já consagrada é a mesma nos dois shows: Last Ride of the Day, Ghost Love Score e The Greatest Show on Earth. As três são mesmo imbatíveis para o encerramento. Last Ride of the Day enche de energia, especialmente na segunda noite, quando veio logo depois de Pan. E Ghost Love Score fica melhor a cada dia.
The Greatest Show on Earth é realmente o momento em que mais se sente a falta de Marko. Algumas faixas como The Islander e a nova Endlessness podem nunca aparecer em shows futuros da banda justamente por serem muito características dele, mas eu achei que a ausência fosse ser mais sentida do que, de fato, acabou sendo. Boa parte disso se deve a Troy, que faz um ótimo trabalho. Boa parte se deve à escolha de músicas. Mas, em casos como esse, em que a música não pode ficar de fora, é preciso arranjar uma forma de funcionar sem ele. A escolha da banda é curiosa, optando por deixar Troy e Floor cantarem juntos os versos de Marko na parte III, The Toolmaker. As notas mais altas soaram um pouco estranhas a princípio, mas o resultado ficou bom. Me pergunto o que deu errado na percepção deles quando ensaiaram com Troy cantando esses versos sozinho, pois é óbvio que tentaram isso e, por algum motivo, decidiram fazer diferente.
Em vez de encerrar com a gravação das partes IV e V de The Greatest Show on Earth, como a banda vinha fazendo nas últimas turnês, An Evening with Nightwish in a Virtual World se encerra com Ad Astra. A última parte do disco dois de Human. :||: Nature. conta com uma leitura do Pálido ponto azul de Sagan, um instrumental épico e com vocalizações da Floor, encerrando com chave de ouro.
Depois, o dirigível deixa The Islanders Arms e voa em direção ao horizonte.
An Evening with Nightwish in a Virtual World foram dois shows incríveis e de um cuidado impecável, que elevaram consideravelmente o nível do “show virtual” durante essa pandemia que já parece eterna. Mesmo depois de perder um de seus principais integrantes, a banda continua em ótima forma e mostra que só tem a crescer. E, a julgar pelos sorrisos de todos eles, não eram só os fãs que estavam com saudade.
O único defeito, por enquanto, foi que só podíamos acessar os shows por 48 horas após sua transmissão. Mas espero que eles usem essas gravações como merecem no futuro, seja lançando em mídia física, seja disponibilizando gratuitamente em seu canal do YouTube ou até assinando com uma plataforma de streaming. O mundo merece ver isso — e os fãs que já viram merecem ver mais vezes.
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