Após a gigantesca turnê Nossa História e a primeira edição do projeto Nós, VOZ, Eles, Sandy queria voltar a lançar um álbum solo, que seria o primeiro completo desde o impecável Sim (2013) e o EP Meu Canto (2016). Mas aí veio a pandemia, mudando um pouco os planos.
Justiça seja feita: não dá pra dizer que Sandy ficou parada nesse período desde o início de 2020. Acho que nem ela mesma tinha percebido como foi presente para os fãs e até o público geral enquanto estava em isolamento. Teve o lançamento da gravação da turnê Nossa História, primeira de Sandy & Junior em mais de uma década, além de uma série documental, A História, sobre a história da dupla e seus projetos individuais. Shows solo e em dupla com o irmão, produzidos em casa e transmitidos ao vivo online. Trilha sonora de Mulan. Alguns singles avulsos, incluindo o arrepiante “Universo Reduzido”. A primeira temporada (ou talvez única, não sabemos ainda) do programa de culinária Sandy + Chef, gravada em um estúdio construído na casa dela. Um EP de três músicas, 10:39, com clipe conjunto gravado no meio do mato tal qual o folklore de Taylor Swift. Será que esqueci alguma coisa?
Então, quando ela anunciou uma nova turnê ainda em 2022, não se questionou o fato de não haver um álbum específico para promover. Era só um retorno merecido aos palcos após um isolamento de dois anos e meio, um período em que muita coisa aconteceu. Mas eis que, de surpresa, veio o Nós, VOZ, Eles 2, movido pela justíssima vontade de “ver gente” depois desse período.
Novamente seguindo o formato de websérie documental acompanhada por clipes individuais, essa segunda edição do projeto de colaborações foi um pouco mais curta e teve lançamentos em “blocos”. Foram dois novos episódios a cada três semanas, sendo os primeiros revelados a tempo do início da turnê, em agosto, e os últimos no meio de setembro.
Outra diferença é que, embora a produção ainda fique por conta de Lucas Lima, multi-instrumentista amante de café e marido da Sandy, as músicas tiveram mais compositores além dos dois. Para agilizar um pouco o processo e tornar o conjunto da obra mais coeso, eles levaram ideias iniciais, em maioria poemas de Sandy, para um camping de composição, que contou com o duo OutroEu, além de Bibi (que já compôs para Anitta e Pabllo Vittar) e Bárbara Dias (jovem promessa da MPB).
Começando já com o pé direito, a primeira convidada é Wanessa Camargo, que participa da faixa “Leve”. As duas são amigas há muitos anos, mesmo que a mídia tenha tentado colocá-las como rivais ou opostos mais de uma vez, e a oportunidade de colaborar finalmente veio nesse novo projeto.
Sinto que a música continua um pouco de onde parou “Eu Só Preciso Ser”, faixa com participação de Iza que encerra o primeiro Nós, VOZ, Eles. Falando de identidade e do constante aprendizado que é existir, ela retoma um tema até comum para a Sandy, com que Wanessa se identificou ainda mais após passar por um processo de divórcio. Aliás, vale lembrar que Wanessa também foi vice-campeã da competição Show dos Famosos no final de 2021, interpretando desde “Bring Me To Life”, do Evanescence, até “I’m a Slave 4U”, da Britney.
A segunda faixa, “De Cada Vez”, é a única do projeto que não foi composta por Sandy e Lucas: foi um presente do guitarrista Edu Tedeschi, guardado por um tempo até aparecer a oportunidade certa de gravar. Essa oportunidade foi realizada na parceria com a baiana-paraibana Agnes Nunes, de apenas 20 anos, uma das maiores revelações da MPB dos últimos anos.
O episódio com Agnes é um dos mais especiais, e não é só porque ela parece ser uma pessoa maravilhosa. O papo no estúdio inclui questões como a xenofobia contra nordestinos, que se apresentou na vida de Agnes em uma aula de canto. Não dá pra imaginar como é violento dizer a alguém que precisa abrir mão de seu sotaque, sua identidade, para cantar, e felizmente ela teve a única reação possível a um absurdo desses: dar as costas. Aliás, a harmonia entre ela e Sandy, que já é ótima pelo fato de as vozes combinarem bem, fica ainda melhor com a diferença de sotaques.
Outra camada que “De Cada Vez” carrega é o significado. A letra casa muito bem com a de “Tempo”, uma das melhores e mais atemporais composições da Sandy, e soa como uma conversa. Uma conversa entre alguém muito jovem, que está aprendendo a lidar com a brutalidade da vida, e uma pessoa um pouco mais velha, que oferece segurar sua mão. Até nisso o formato do dueto funciona perfeitamente, considerando a diferença de quase 20 anos de idade entre as duas cantoras. Mas não é só isso. Essa também foi a última música que Sandy apresentou a Pat Kisser, esposa do músico Andreas Kisser (Sepultura), que era uma de suas melhores amigas e madrinha do filho Theo. Pat se foi em julho de 2022, lutando contra um câncer, e a música foi (e acredito eu, sempre será) dedicada a ela.
“Tudo Teu”, com a participação do gaúcho Vitor Kley, é uma música tranquila que fala de se entregar completamente. Embora seja escrita mais como uma declaração de amor receosa, sinto que ela reflete um jeito de viver. O jeito de quem prefere não se comprometer com algo se não acreditar naquilo de verdade, se não for para dar seu melhor e fazer com que dê certo. E, para quem quer dar só uma pequena parte de si, às vezes essas pessoas parecem exigentes demais, investidas demais, honestas demais. Talvez Sandy seja exatamente assim, considerando o quanto se importa com as pessoas próximas e seu trabalho, além do perfeccionismo que ela demonstra.
Também foi uma grata surpresa poder conhecer o Vitor Kley além de “O Sol”, uma música que realmente não é pra mim. Esse episódio tem alguns dos momentos mais divertidos da temporada, e conta com a participação de Junior, Xororó e Noely.
O grupo OutroEu, atualmente um duo composto por Mike Tulio e Guto Oliveira, já é velho conhecido. Foi um grupo formado para o programa Superstar, do qual Sandy era jurada. Ela participou da música “Ai de Mim”, do álbum OUTROEU (2017), e eles fizeram parte do camping de composição para o Nós, VOZ, Eles 2. A escolha deles para essa música específica se deve a uma série de fatores, incluindo as referências em comum para a composição e a empolgação que ela deixou nos compositores.
E, de fato, “Destruição” é uma faixa empolgante, uma das mais encorpadas do projeto e, acredito eu, bastante influenciada pelo rock alternativo. Lucas até diz que ela “implorava” para ser um hardcore. Nem quero imaginar como teria ficado para não me empolgar demais com algo que não vai acontecer.
Se no primeiro Nós, VOZ, Eles havia uma música cantada apenas por Sandy, com participação do guitarrista Mateus Asato, desta vez ela incluiu uma parceria com o pianista pernambucano Amaro Freitas. Também é um dueto no qual o outro artista é um instrumentista, que traz sua voz de outra forma na composição. “Amor Não Testado” é a faixa mais influenciada pelo jazz, estilo pelo qual Amaro é famoso mundialmente, e foi a única escrita apenas por Sandy e Lucas. A letra poética e até complicada descreve seu objeto já nos primeiros dois versos: “Essa é a história de um amor / Que poderia ter sido e não foi”.
Durante o episódio, eles comentam várias questões da carreira musical, como acontece com vários dos convidados. Isso inclui as boas, como a experiência em comum de vir de uma família musical, mas inclui também as ruins. A instabilidade. A dificuldade de realmente fazer sucesso. E a concentração de grande parte do mercado nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro — algo que Sandy já sente por ser do interior, embora ainda do sudeste, e que é mais forte ainda para quem vem de outras regiões. Amaro tem o mesmo sentimento que muitos de nós, um contentamento descontente com a possível necessidade de deslocar sua vida para São Paulo para ter uma chance em sua carreira. Ele ainda reforça como é importante poder viver da música ainda vivendo em Recife, especialmente do ponto de vista da representatividade.
Por último, mas não menos importante, Ludmilla participa da faixa final, “Voltar Pra Mim”. Já havia rumores de que as duas fariam uma parceria, após alguns stories no estúdio, mas, como ela tem seu próprio projeto colaborativo Lud Sessions, não era nada confirmado. Apropriadamente a música mais animada do álbum, ela conta com melodias inusitadas e fala dos pedaços de nós, bons e ruins, que deixamos pra trás com o passar do tempo. É um encerramento incrível.
O episódio com ela é um dos mais divertidos, incluindo desde a apresentação do conceito de café especial até o momento da famosa referência “Ludmilla mandou avisar que é hoje”. Elas trocam ideias de composição e relatos da fama, conversam sobre o lado bom e ruim de ter o tão sonhado estúdio em casa, e Brunna, sempre quietinha, entra em cena para contar histórias do casamento. Uma síntese do clima leve que acompanha toda a série.
Senti que os percalços da vida artística e a vontade de se conectar com uma comunidade apareceram várias vezes, com vários convidados. Seja entre os mais jovens, periféricos, negros, nordestinos, que felizmente estiveram muito presentes aqui, entre os mais gigantes da cena, ou entre os que vêm do sul. E fiquei muito feliz de essas partes da conversa terem sido incluídas nas versões finais dos episódios. Essa tendência de recusar a centralização nas megalópoles pode ser um reflexo de como nos fechamos durante a pandemia, que parece ter intensificado a necessidade de pertencimento e de reafirmar nossas identidades. Também pode ser um reflexo de como a paciência para se sujeitar a certas coisas mudou durante esse período, quando fomos atingidos em cheio com a percepção de que a vida passa num sopro.
Como sempre, a reação dos convidados é uma prova incontestável do valor de Sandy na música brasileira, seja na dupla com Junior ou em carreira solo. E, acima de tudo, todos eles transbordam amor pela música e energia boa. Isso é, de longe, a coisa mais “Nós, VOZ, Eles” que o Nós, VOZ, Eles 2 poderia entregar.
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