Pequenos deuses, de Terry Pratchett, é um convite para refletir sobre fé, conhecimento e o papel das instituições em nossas vidas. Pode parecer por essa breve descrição que se trata de um livro acadêmico sobre religiões institucionalizadas e seu papel em termos de controle social, mas não é esse o tipo de livro que Pratchett nos apresenta. Pelo menos não totalmente. O 13º livro da série Discworld usa um humor ácido para trazer reflexões profundas de forma ágil por meio de diálogos, estruturados de forma que, quando menos espera, você percebe que está rindo e filosofando ao mesmo tempo.
Apesar de ser uma série de mais de 30 livros, algumas obras ambientadas em Discworld podem ser lidas individualmente sem problema de ambientação ou necessidade de conhecimento prévio. São histórias que se passam em um mundo de fantasia que tem magia e deuses e que é similar à Terra, mas que é plano, em formato de disco, e está nas costas de uma tartaruga, sendo o disco apoiado por elefantes em seu casco. E é com esses aspectos inusitados que o humor e a sátira de Pratchett se desenvolvem, no melhor estilo britânico de sua geração, com uma escrita similar a Douglas Adams e Monty Python.
A história narra a saga de Brutha, um noviço da religião Omniana, que crê no Grande Deus Om — o maior de todos, representado normalmente como um grande touro de quatro cabeças, ou outro animal imponente que pune os ímpios e está sempre de olho nos pecados de seus fiéis. Além disso, a religião é o pilar do Estado beligerante de Omnia, que é governado pela Igreja de Om, com um plano de formar um Império que seja fiel a Om (ou à Igreja?).
Brutha, que é inocente e não muito brilhante, encontra o seu Deus. Mas Om não é bem como ele imagina. Om aparece para ele como uma pequena tartaruga e quer que seu fiel discípulo leve sua palavra e faça com que a crença Nele aumente, para que assim ele volte ao seu esplendor. Entretanto, ao entrar em contato com seu Deus, Brutha descobre que os dogmas da Igreja Omniana não condizem exatamente com o que Om diz e com os acontecimentos narrados pelos profetas. Com isso, surgem as dúvidas e pensamentos, principais inimigos da Quisição.
— (…) Isso significa que você é todo-poderoso. E você é. É o que diz o Livro de Ossory. Ele foi um dos Grandes Profetas, você sabe. Assim espero — acrescentou Brutha.
Diálogo de Brutha e Om (p. 43)
— Quem lhe disse que eu era onipotente?
— Você.
— Não, eu não disse.
— Bom, ele disse que você disse isso.
— Nem mesmo me lembro de alguém chamado Ossory. — murmurou a tartaruga.
Brutha hesitou. Mas tinha visto as estátuas e ícones sagrados. Não podiam estar errados.
A Quisição é a instituição de inteligência e vigília da Igreja. Dividida entre inquisidores e exquisidores, é ela que patrulha a correta fé em relação às escrituras e à religião omniana. No centro dela, está Vorbis. Ele é o líder da Quisição e o real comandante da Igreja. É o personagem que inspira o medo e que faz as perguntas que levam automaticamente os seus “entrevistados” a confessarem até pecados que não foram cometidos. E Vorbis precisa de um novo assistente, pois o antigo era um conspirador contra a Igreja e acreditava que o mundo de Discworld era um disco e não uma esfera. Como seu novo ajudante, precisava de alguém fiel e com boa memória, e assim ele encontra Brutha. Especialmente para sua missão em Efebo.
Os inquisidores paravam de trabalhar duas vezes por dia para o café. Suas canecas, que cada um trouxera de casa, eram reunidas em torno da chaleira no fogão da fornalha central, que, aliás, aquecia os ferros e as facas. (…) E tudo isso significava o seguinte: que quase todos os excessos do mais louco dos psicopatas podem ser facilmente duplicados por um homem de família normal e gentil, que apenas vai trabalhar todos os dias e tem uma tarefa a fazer.
(p. 17)
Vorbis vai a Efebo resolver pendências da guerra (ou iniciar uma?) entre as duas nações e questionar sobre o assassinato de um enviado que deveria pregar a religião omniana por lá. Efebo, para Vorbis, é o centro do pecado. Uma cidade que cultua vários deuses pagãos, tem costumes libertinos, sem ordem e, especialmente, tem filósofos. Esse excesso de pensamento perturba qualquer tipo de controle.
Em Efebo, Brutha tem contato com o pensamento e o conhecimento. Como mencionado acima, Brutha tem uma boa memória. Mas fui econômico. Brutha tem uma memória infalível, lembra de tudo que lhe é apresentado, em todos os minuciosos detalhes. Entretanto, ele não pensa sobre esses fatos, apenas os decora e replica. E aí está o papel de Efebo e seus filósofos na jornada de Brutha. Não apenas seu Deus o faz questionar sobre as instituições, mas agora ele aprende a pensar, o que é o maior perigo para um omniano.
Nesse momento é que o livro deslancha e começa a apresentar seus principais questionamentos, para além de piadas bem colocadas e apresentação de personagens e cenário. É quando se fala sobre o principal papel do conhecimento, de se questionar e não ter certeza. De que a certeza, por mais confortável que possa parecer, é limitante e opressora, ainda mais quando institucionalizada e dogmática. E, especialmente, de que o que é dado como “real conhecimento” é algo mutável; a ciência não é uma verdade pura, mas em constante debate e teste.
Além disso, há uma evolução sobre a crença em seu Deus ou na instituição que o representa. Uma referência ao Rousseau e à ideia de “tantos homens entre eu e Deus”, de que o excesso de instituição mais afasta do que aproxima daquilo que seria o cerne da religião. Traz mais um culto à Igreja que ao Deus.
— Isso já aconteceu antes — disse a tartaruga (Om). — Dezenas de vezes. Sabia que Abraxas encontrou a cidade perdida de Ee? Inscrições muito estranhas, diz ele. Crença, diz ele. A crença muda. As pessoas começam acreditando no deus e terminam acreditando na estrutura.
(p. 153)
— Não estou entendendo — disse Brutha.
— Deixe-me colocar de outra forma — insistiu a tartaruga. — Eu sou o seu Deus, certo?
— Sim.
— E você me obedecerá.
— Sim.
— Bom. Agora pegue uma pedra, vá e mate Vorbis.
(…)
— Mas ele vai… ele é… a Quisição iria…
— Agora você sabe o que eu quero dizer. — disse a tartaruga. — Você tem mais medo dele do que de mim, nesse momento. Abraxas diz aqui: “Ao redor do Deus se forma um Casca de orações e Cerimônias e Edifícios e Sacerdotes e Autoridade, até que enfim o Deus morre. E isso pode não ser notado.”
O livro tem um ritmo lento no começo. É sentido que até a página 100 há uma série de acontecimentos e citações que podem gerar uma dispersão do leitor. E não é por ser o 13º livro de uma série, e sim porque Pratchett vai, ao mesmo tempo, construindo a narrativa e apresentando o cenário em que estamos sendo colocados. Além disso, o livro não é dividido em capítulos. Ele segue de uma vez, apenas mudando a cena com duplo espaço entre os parágrafos, o que pode confundir alguns leitores em relação a quem está na cena ou em que momento estamos.
Pequenos deuses é uma ótima introdução ao universo de Discworld e ao estilo de Pratchett. Quem já leu O Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams ou Belas maldições do próprio Pratchett com Neil Gaiman irá encontrar todos os elementos dessas obras: críticas rápidas, ácidas, ótimos diálogos e um niilismo cômico espetacular. E, apesar de ser escrito por um ateu e ser uma crítica às religiões institucionalizadas, não deixa o gosto de birra. Quem tem fé poderá até ter sua fé renovada, pois a mensagem é simples: acredite na essência e não na aparência.
Capa Comum: | ||
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