Anton Pavlovich Tchekhov (1860—1904) foi um médico, dramaturgo e escritor russo considerado um dos maiores contistas de todos os tempos. Em suas cartas, ele introduz e descreve um conceito que posteriormente seria conhecido como Arma de Tchekhov. Em uma de suas correspondências com Aleksandr Semenovich Lazarev, Anton fala que, se uma arma aparece carregada em uma cena, ela deve ser disparada em algum momento.
O conceito fica exemplificado em uma arma, porém pode ser estabelecido de forma mais generalista: se um elemento aparece em foco em determinado enredo, ele deve ser aproveitado e ser importante posteriormente. Nada na narrativa deve ser acrescentado de forma a tirar a atenção do leitor ou espectador da obra de forma displicente. É possível observar esse artificio sendo utilizado não só na cultura pop, mas em várias obras através dos tempos e das mais diversas formas.
No começo de Um lugar silencioso (2018), Evelyn passa por uma escada com roupas que lá ficam presas em um prego, que após a passagem dela fica com a ponta para cima. Esse elemento reaparece no final do filme, quando, em trabalho de parto, ela desce para uma área abafada no porão e acaba pisando nesse mesmo prego.
Em As crônicas de Nárnia – O sobrinho do mago, temos dois exemplos de armas de Tchekhov: um poste é levado da Inglaterra para o mundo de Nárnia e uma árvore de Nárnia que vem para o nosso mundo tem sua madeira utilizada para fazer um guarda-roupa, dois itens importantes para a narrativa de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. No Universo Cinematográfico Marvel, temos vários exemplos que ficaram conhecidos por serem apresentados nas famosas cenas pós-créditos: elementos que são importantes em tramas de outros filmes do universo e que amarram todas as histórias. Inicialmente, eram informações que poucas pessoas viam, mas se tornaram tão populares que até sentimos falta quando não temos essas cenas pós-créditos.
Na franquia Harry Potter (SIM, abri um parágrafo só para falar de Harry Potter porque eu sou Potterhead e Lufano), temos vários exemplos desse artifício de forma absurdamente sutil. No primeiro capítulo do primeiro livro, temos uma menção ao tão amado Sirius Black, que se torna muito importante para a trama a partir do terceiro livro. No segundo livro, somos apresentados à poção Polissuco, que naquele contexto é usada para espionar, mas no quarto e no sétimo livros é extremamente importante. Nesse mesmo livro, temos também o início do enredo das Horcruxes com o diário de Tom Riddle. O diário se apresenta como um Bumerangue de Tchekhov (mais sobre ele e outras ramificações no próximo parágrafo): não só ele aparece lá no começo do segundo livro e é importante no ato final da trama, mas também entendemos a sua real importância no sexto livro, quando somos apresentados ao passado de Voldemort e às Horcruxes. Eu poderia citar um milhão de exemplos na saga, mas isso já é suficiente, até porque os exemplos a seguir serão da saga.
Com o passar do tempo, acabaram surgindo algumas subdivisões da Arma de Tchekhov. No fim, todas seguem a mesma definição, porém acaba ficando mais elegante ter mais termos, então seguem eles:
– Bumerangue de Tchekhov: Quando a arma é usada mais de uma vez na mesma trama (ela vai e volta). Exemplo: Diário de Tom Riddle.
– A pessoa de Tchekhov: Quando em vez de uma arma ou objeto temos uma pessoa. Exemplo: Dobby, Sirius Black e vários outros que são inicialmente citados ou aparecem de forma simples, mas são muito importantes para o enredo.
– Arsenal de Tchekhov: Quando em uma obra temos várias armas. Exemplo: considerando a obra de Rowling no mundo mágico, temos várias armas, ou seja, o universo de HP possui um Arsenal de Tchekhov.
– Habilidade de Tchekhov: Quando uma habilidade inicialmente sem propósito acaba sendo importante num futuro. Exemplo: A habilidade se Simas Finnigan de explodir as coisas, que é abordada comicamente em toda a série e no último livro é importante para impedir a entrada dos caçadores de recompensa.
– Arma de Tchekhov Reversa: Quando algo é apresentando com uma extrema importância e, no fim, se mostra inútil. Exemplo: o Medalhão da Sonserina Falso de Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Uma parte do clímax da trama envolve capturar o medalhão e há toda uma preparação de Dumbledore e Harry sobre essa caçada, que, no fim, se mostra inútil.
Essa ferramenta obviamente deve ser introduzida de forma inteligente pelo autor, porque, se a intenção ou a descrição for deixar muito na cara, essa ferramenta acaba sendo quase que inútil. Evidentemente, ela se comporta de forma diferente entre livros e filmes. Em um filme, por exemplo, não é interessante o personagem sempre ser apresentado em ambientes vazios e ter apenas um elemento ali para ser notado. No cinema, essa ferramenta é trabalhada através do foco da câmera e da fala de personagens, enquanto em livros a descrição ou citação de termos já é suficiente. Assim, ao se retornar a passagens anteriores da obra, já é possível notar aquele elemento.
Portanto, podemos perceber que a Arma de Tchekhov é mais uma das ferramentas de enredo que geram referências dentro da própria obra. Sendo usada sabiamente, amarra detalhes narrativos simples que engrandecem a obra e traz um prato cheio aos consumidores mais detalhistas de histórias – eles vão se sentir recompensados por saber que sua atenção aos pequenos detalhes valeu a pena.
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