A Voz Suprema do Blues (Netflix, 2020), é um filme baseado na peça teatral Ma Rainey’s Black Bottom (1984). O longa acompanha uma sessão de gravação em estúdio da cantora e compositora Ma Rainey (Viola Davis), conhecida como a “mãe do blues”, e sua banda na cidade de Chicago no ano de 1927.
Toda a trama gira em torno do clima de tensão durante a gravação das músicas da artista, que se vê obrigada a ter que se impor diante dos interesses exclusivamente econômicos e pessoais dos produtores brancos e da ganância de seu trompetista, Levee (Chadwick Boseman), que está motivado unicamente a impulsionar a carreira e montar sua própria banda.
Por ser baseado na peça que leva o mesmo nome, o filme carrega muitos aspectos teatrais em sua linguagem, principalmente pelo fato de a trama se ambientar quase que inteiramente dentro do estúdio. Isso ajuda a reforçar o clima de tensão, já que é como se os personagens estivessem o tempo todo convivendo dentro daquele mesmo prédio, causando uma espécie de sensação claustrofóbica reforçada pelo calor que a personagem MaRainey’s parece sentir constantemente. Essa sensação é acentuada pela utilização de cores quentes na fotografia, reforçada pelos tons amarelados e alaranjados, que ajudam a ressaltar tanto a temperatura do ambiente quanto entre os personagens, que muitas vezes chega perto de pegar fogo.
Além disso, fica muito clara a separação entre as personagens que passam quase toda a trama em ambientes distintos, quase como se existissem dois mundos e duas histórias paralelas acontecendo ao mesmo tempo. Enquanto Ma Rainey, seu sobrinho Sylvester (Dusan Brown), sua amante Dussie Mae (Taylour Page) e os produtores ficam na parte de cima do estúdio, toda a relação entre os membros da banda acontece na parte de baixo, em um lugar semelhante ao porão do prédio.
Além disso, o ponto principal do filme não é a sua trama, mas os diálogos e as relações estabelecidas entre as personagens. Assim como no teatro, os holofotes estão principalmente nas atuações, na profundidade dos diálogos e na expressividade dos atores. Nisso se destaca a mão do diretor, George C. Wolfe, que soube amarrar a linguagem teatral e a cinematográfica, fazendo com que as duas se complementassem na dose certa.
Viola Davis interpreta nesse filme mais uma obra do dramaturgo August Wilson que foi levada para as telonas. Em 2016, ela brilhou na adaptação de Fences (Um Limite Entre Nós) para os cinemas. O longa, dirigido e protagonizado por Denzel Washington, rendeu a ela o Globo de Ouro e o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Em Uma Voz Suprema do Blues, eles voltam a trabalhar juntos, já que Denzel é um dos produtores, juntamente com Todd Black e Dany Wolf.
A Ma Rainey interpretada por Viola Davis traz características de uma mulher forte e decidida, capaz de enfrentar qualquer um ao mesmo tempo em que traz uma constante expressão de cansaço e melancolia, ressaltada pela maquiagem carregada, e que muda completamente quando ela está se apresentando. Uma de suas falas no filme destaca bem isso:
Não aguento o silêncio. Sempre preciso de música tocando na minha cabeça. Equilibra as coisas. A música preenche o vazio. Quanto mais música no mundo, menos vazio.
No entanto, apesar de o filme e a peça teatral que o inspirou carregarem o nome de Ma Rainey, é o personagem de Chadwick Boseman, o trompetista Levee, quem rouba todas as atenções. O ator tem monólogos incríveis durante o longa e é obrigado a demonstrar sentimentos extremos de um instante para o outro, partindo de um momento de pura descontração para uma explosão furiosa em questão de segundos, sem que isso soe artificial. Levee é o personagem que tira o espectador da zona de conforto, mexe com os sentimentos de quem assiste. Mesmo quando toma atitudes absurdas e indefensáveis, ainda é capaz de gerar uma certa empatia. O trabalho de Chadwick Boseman é tão brilhante que merece, com toda a certeza, uma indicação ao Oscar. Caso ganhe a estatueta por atuação mesmo após sua morte, o ator se juntará a nomes como Heath Ledger (por O Cavaleiro das Trevas) e Peter Finch (por Rede de Intrigas).
Vale reforçar que os pontos mais fortes do filme são os diálogos e as atuações que dão peso a todas as questões neles expostas, como o machismo e o racismo que Ma Rainey precisa enfrentar constantemente, e trazem importantes reflexões para quem assiste a obra. Além disso, revela como a indústria fonográfica se utilizou da cantora em busca de dinheiro, fazendo dela e de seu talento quase que objetos meramente descartáveis. E essa atitude não foi apenas com ela, mas se estendeu aos demais artistas negros que, depois de sugados e espremidos até a última gota pela indústria da música, ainda viram toda a sua arte e cultura serem apropriadas pelos brancos. Afinal, “eles não se importam comigo, só querem a minha voz”, como diz a personagem.
A Voz Suprema do Blues é um filmaço e, assim como o próprio Blues, nos pega de surpresa pela sua força e potência. Somente irá entendê-lo quem sabe que diante de seus olhos não está apenas um longa-metragem, mas a vida falando.
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