Pequena coreografia do adeus, segundo livro de Aline Bei, começa com um chamado a todos aqueles que procuram um lar dentro de casa, sobretudo aos que procuram desesperadamente. Ao iniciar a leitura, ficou nítido que eu precisaria tomar fôlego para acompanhar a composição da coreografia de Júlia Terra, protagonista do livro narrado em primeira pessoa.
Autora de O peso do pássaro morto, Aline Bei lançou “pequena” – como apelidou seu segundo romance – em 2021, pela Companhia das Letras. O livro é dividido em três partes: Júlia, Terra e Escritora. A autora disponibilizou em seu perfil no Spotify três playlists referentes a cada parte do livro, com músicas que inspiraram o processo de escrita e que transformam a leitura em uma experiência ainda mais íntima:
Nascida em um ambiente sufocado pelo desamor, Júlia precisou lidar com uma das facetas mais difíceis da vida: o abandono. Ainda quando criança, precisou enfrentar o divórcio turbulento de seus pais, a relação conflituosa com sua mãe e a solidão decorrente de uma certa rejeição paterna. Escrito em versos, o livro nos conduz a perceber de qual maneira nosso passado molda a forma com que nos enxergamos, as relações que estabelecemos, ou até mesmo a nossa capacidade de alimentar sonhos.
Não é difícil deduzir que a infância de Júlia nunca pôde ser experimentada com a leveza que deveria. É duro notar o quanto ela ansiava pelo afeto dos pais, o quanto desejava sentir-se amada por eles. Mas o peso do desamor recaía também sobre ela, colocando-a em uma posição de desamparo extremamente cruel para a idade que tinha.
— não se preocupe, teremos uma conversa em família — ela explicou, me conduzindo na direção oposta da que eu planejara
e nessa hora eu tive que segurar a boca
pra não rir no rosto dela que não merecia, mas deu vontade
de dizer que: uma conversa em família
nunca foi possível, não na minha casa
lá somos três solitários
irreversíveis
gravemente feridos
da guerra que travamos contra nós.
[…]
somos ruína e pó.
nosso jeito de conversar, diretora, é nos machucando.
não por mal, não somos maus.
somos tristes e isso é o que fazemos com a nossa solidão.
A relação conflituosa entre Júlia e sua mãe escancara uma realidade ainda muito presente no cotidiano de inúmeras famílias: o ciclo do abandono vivenciado por mulheres. Vera, mãe de Júlia, reproduzia com a filha muitos dos comportamentos violentos que havia vivenciado com sua mãe. Entender um pouco da história de Vera com sua mãe facilita o processo de compreensão da forma com que ela escolhe construir sua relação com Júlia. Porém, é importante destacar que compreender a influência da história de vida de Vera não impede que o leitor experimente, ao longo da leitura, vários incômodos em relação à maneira com que ela projeta suas dores e angústias em Júlia.
as surras que eu levava
eram as surras que a minha mãe levou
em looping
na minha pele, na pele dos filhos que ainda não tenho.
é o que chamam de carma ou: carregar uma pedra involuntária no coração.
Apesar de em alguns momentos ter recorrido à violência, Júlia sempre evidencia a necessidade de uma mudança radical para que fosse possível transgredir o ciclo de opressões e violências existente em sua família. E é através da arte que ela encontra uma forma de dar voz aos sentimentos, desejos e sonhos que sempre pulsaram dentro dela.
Mesmo tendo como premissa a demonstração de como experiências passadas (sobretudo na infância) reverberam ao longo da nossa vida, Pequena coreografia do adeus não assume o fatalismo para descrever o desenrolar da história de Júlia.
agora eu sou dona
do meu tempo
e do meu corpo
todos os meus desejos assolavam o meu espírito, a grande festa, você precisa olhar pra gente agora
Sim, eu sei.
calma
aos poucos
cuidaremos de tudo o que ainda não fomos […]
Os bons encontros também fazem parte da história de Júlia e garantem a esperança de um futuro cheio de possibilidades para ela, que, mesmo sufocada e silenciada de muitas maneiras, preservou e alimentou uma de suas maiores características: a sensibilidade. O amparo encontrado nas novas relações faz com que Júlia experimente novas sensações até então somente localizadas no desejo.
A escrita é uma das coisas que acompanham Júlia ao longo de diversas fases de sua vida. Por mais que ela hesite em se afirmar enquanto artista, é através disso que a protagonista potencializa e cria sentido para as experiências e relações que a atravessaram ao longo do seu crescimento. Isso me remeteu a uma citação do filósofo Gilles Deleuze em uma entrevista conhecida como Abecedário de Gilles Deleuze: “escrever é sempre um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós”.
Em um trecho do livro, Júlia afirma que ler é viver muitas vidas além da sua. E que experiência intensa foi conhecer a vida de Júlia! Uma leitura que te afeta do início ao fim e que com certeza continuará reverberando por muito tempo por aqui.
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