Em 2020, a HBO anunciou que Euphoria ganharia dois episódios especiais, o que aconteceu em dezembro do mesmo ano e janeiro de 2021. Os episódios seguem as consequências imediatas dos acontecimentos do final da primeira temporada, de maneira intimista e impactante, deixando um pouco o glitter de lado e adentrando no íntimo das suas duas personagens principais: Rue e Jules.
Trouble Don’t Last Always – Part 1: Rue
O primeiro episódio especial dessa série que rendeu um Emmy a Zendaya, atriz que interpreta Rue, é intitulado Trouble Don’t Last Always, ou, em tradução literal, “problemas não duram para sempre”. Foi lançado dia 6 de dezembro de 2020 nos EUA, dirigido por Augustine Frizzell e escrito por Sam Levinson. Nele somos apresentados à visão da Rue sobre os acontecimentos anteriores – novamente, uma vez que a narração da primeira temporada perpassa por ela também. No entanto, temos aqui uma visão mais honesta e sensível da Rue, mostrando até que, talvez, ela não tenha sido uma narradora tão confiável assim dos acontecimentos da primeira temporada.
O episódio de quase uma hora se desenrola em uma conversa intimista entre Rue e Ali, seu padrinho de reabilitação. Desde o início da conversa, podemos notar a diferença narrativa dos episódios que compõem a primeira temporada, porque existe aqui mais intimidade e honestidade de Rue. Ela é questionada por Ali sobre sua percepção sobre o mundo ao seu redor, sobre sua relação com Jules, sobre sua relação com sua mãe e irmã e sobre sua relação com as drogas. É um diálogo extremamente doloroso e real.
Em um painel da CCXP 2020 em que falou um pouco sobre o episódio, Levinson (criador da série) disse: “É um episódio que está entre as duas temporadas e faz um mergulho em Rue e Ali (Colman Domingo). Será bem diferente. Nos deu a oportunidade de aprofundarmos e chegarmos na alma e coração dessa garota. Vamos vê-la lutando e tendo a oportunidade de mudar.”
Toda a atmosfera do episódio ajuda na construção desse clima de mudança, e no seu decorrer isso se torna ainda mais impactante ao se aprofundar cada vez mais no sofrimento da Rue; a dor se torna palpável ao tê-la juntamente ao Ali relembrando tudo que aconteceu até então. Permeado de diálogos, mas com silêncios estratégicos, o episódio deixa claro que silêncio não é ausência de barulho, que não é necessário fazer barulho para percebermos a dor de alguém. Seguindo essa premissa, os silêncios são quase todos da Rue, e os trejeitos dela durante o episódio explicitam o quanto ela está sofrendo.
O diálogo sobre drogas, em minha percepção, é o mais marcante de todo o episódio, ao mostrar como eles percebem sua dependência química. E, saindo de todo e qualquer julgamento moral, há sensibilidade e honestidade. É um diálogo cru, objetivo e sem firulas. É um soco no estômago, assim como todo o episódio.
Ali ajuda Rue a ter uma visão maior sobre a sua dependência, mostrando que, mesmo tendo feito coisas terríveis, ela não é uma pessoa ruim. O acolhimento proporcionado por Ali é o mais honesto possível, tentando sempre mostrar os acontecimentos a partir da racionalidade para Rue, mas sem negligenciar seus sentimentos. Como uma pessoa que está sóbria há mais de 7 anos, Ali mostra outra perspectiva a Rue e tenta ajudá-la a não cometer os mesmos erros que ele cometeu em busca da sua sobriedade.
Ao adentrarmos ainda mais no personagem de Ali, temos uma ideia da importância dele no crescimento de Rue. Levinson, ao falar sobre a relação de Ali e Rue no painel da CCXP 2020, falou que “Ali está ajudando Rue com base nos erros que cometeu na vida dele. Ele quer fazer a diferença, quer que ela pare de usar drogas, quer que ela confronte os problemas ao invés de fugir deles”. Isso me faz acreditar que na segunda temporada teremos um aprofundamento na relação de Rue e Ali, sendo ele uma pessoa importante para ela na busca de sua sobriedade.
Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob – Part 2: Jules
O segundo episódio, lançado dia 24 de janeiro de 2021, é intitulado Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob, dirigido por Sam Levinson e escrito por ele e Hunter Schafer, a atriz que interpreta Jules. O fato de ela fazer parte da produção permite que se torne mais pessoal, tendo em vista que a própria visão da Hunter sobre o que é ser transgênero é transmitida através da Jules. Além disso, uma das importâncias dos episódios é percebermos a visão da Jules sobre todos os acontecimentos que eram narrados por Rue e (me) faziam acreditar que, em certo nível, a Jules era a vilã.
O próprio criador da série, em entrevista para a GQ, contou sobre como a ideia do episódio é justamente abordar a percepção da Jules para ela não sair como vilã:
Houve um momento em que li que a personagem de Jules estava se tornando uma tendência no Twitter porque as pessoas estavam debatendo se ela era uma vilã ou não. A ideia de que as pessoas pudessem assistir à série e ir embora sentindo que ela era uma vilã foi tão apavorante para mim que pensei: ‘Vou escrever um episódio que força o público a olhar para o mundo através dos olhos dela e entender o fardo de amar um viciado’. Liguei para ela (Hunter) para saber o que ela acha desse episódio. Várias horas depois, estávamos conversando e ela disse algo baseado em um poema que havia escrito quando tinha 16 anos sobre o oceano e sua feminilidade e força. E eu disse: ‘Bem, isso deve ser um diálogo real. Você quer escrever isso comigo?’. Quatro dias depois, tivemos um rascunho do episódio que coescrevemos.
A forma de abordar a visão da Jules sobre suas relações e sobre como ela se sente enquanto transgênero é realística e poética. Em suma, ter sido coescrita pela Hunter permite uma sensibilidade que, me arrisco a dizer, não seria captada por qualquer outro diretor que não tem uma vivência maior sobre o tema, que merece extrema atenção por se tratar de algo tão delicado de abordar. Se torna mais especial ainda por se tratar da primeira vez, durante a série, que temos um aprofundamento tão grande sobre a Jules sem ser pela ótica de outra pessoa (Rue).
O episódio segue uma dinâmica parecida com o anterior, perpassando por uma conversa intimista entre duas pessoas, mas agora entre Jules e sua nova terapeuta, na primeira sessão da terapia. Já durante o primeiro minuto temos uma cena extremamente impactante ao som da música de Lorde, Liability, que deixa claro que, se o episódio anterior foi doloroso, esse seguirá o mesmo caminho.
Somos apresentados, agora, a todas as facetas de Jules, tendo uma visão mais ampla sobre sua vida e sobre todo o sofrimento e as dúvidas que ela tem, todo o medo que a permeia e atravessa suas relações, principalmente a sua com Rue. O seu medo de ela ter uma recaída por sua causa e o paralelo entre a sua relação com ela e a que teve com a própria mãe. Esse paralelo permite que entendamos todo medo que envolve Jules e como a própria relação dela com a Rue pode ser um gatilho.
No entanto, o episódio vai além da relação dela com Rue e mostra como a própria Jules também está nesse processo de mudança. Mostra como a relação dela com a mãe ainda a afeta mais do que ela se permite admitir, e como ela percebe sua própria feminilidade como algo que teve sua gênese no que homens desejam e entendem como feminino. Temos aqui um aprofundamento sobre o que a Jules entende sobre feminilidade, como é forte e criativa, indo muito além daquilo que ela entendia outrora. Além disso, isso afeta a percepção sobre a transição e seus motivos, e tudo isso trabalha para uma incrível forma de subverter a feminilidade enquanto norma.
Apesar de não ser necessariamente obrigatório assistir aos episódios especiais para entender o que está por vir em Euphoria, eles deixam um gatilho para a segunda temporada – como se não já existisse o suficiente. Mas, principalmente, ele nos coloca no íntimo de suas duas personagens principais, permitindo que tenhamos algumas respostas sobre o que atravessava a cabeça delas em algumas situações e assim consigamos entendê-las. Não é de se esperar que Euphoria tenha novamente algum episódio semelhante a estes, apesar da aprovação que tiveram, porque vai de encontro à narração caótica e frenética que fez da série um sucesso. A pausa nisso, aliás, é o que permite processarmos todo o sofrimento da Rue e Jules, servindo de ponte para a segunda temporada.
Se eu fosse resumir os dois episódios especiais, diria que são um oceano em toda sua plenitude, onde, por maior que seja a aparente calma que o atravessa, suas profundezas são barulhentas e caóticas. São uma obra fantástica com atuações incríveis de Zendaya, Colman e Hunter, que estão completamente imersos em seus respectivos personagens.
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