Certa manhã ao acordar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se, na sua cama, metamorfoseado num inseto monstruoso.
A Metamorfose (1915) de Franz Kafka talvez seja um dos livros mais lidos de todos os tempos. Não apenas por sua longevidade e acessível tamanho, mas também por, de modo cru, questionar a natureza humana e a realidade. A qualidade e inovação que o texto trouxe, especialmente quando o autor já não estava mais vivo, tiveram reflexos não só na literatura, como também em estudos filosóficos e psicológicos. De fato, é difícil encontrar um livro de ficção com menos de 100 páginas com tamanho impacto na cultura ocidental quanto A Metamorfose.
Franz Kafka não era um escritor profissional. Esse fato é importante assinalar, pois, como muitos artistas e intelectuais, sua obra só foi reconhecida post mortem e, no caso de Kafka, a contragosto. Ele era um funcionário de uma empresa de seguros, com hábitos reservados e reclusos. Publicava contos periódicos e nunca chegou a constituir família ou ter filhos. Esse fato é importante, pois a crueza com que ele via o mundo no início do século XX é traduzida em sua linguagem e produção literária. A falta de rebuscamento na escrita de Kafka e sua maneira mais direta de seguir com seus romances e contos mostram que a faceta do homem reservado guardava uma mente fervorosa e crítica às condições humanas e à pressão da estrutura social perante os indivíduos. Franz Kafka morreu aos 40 anos de tuberculose. Em seu testamento, deixou ao seu amigo Max Brod vários de seus originais, que incluíam O Processo e O Castelo, sob a condição de nenhum desses textos serem publicados. Agradecemos hoje a Brod por não ter obedecido ao seu amigo.
A história de A Metamorfose é conhecida mesmo por quem não a tenha lido: Gregor Samsa acorda um dia transformado em um inseto. É isso, sem explicação. Diretamente nesse fato e como ele e as pessoas ao redor lidarão com isso. É esse encontro entre a fantasia e o real que faz desse livro um marco do realismo fantástico, estilo que marcou época na literatura latino-americana e que, na Europa, teve Kafka com uma das referências.
A metamorfose, além de seu sentido claro e literal, também mostra a transformação de mais dois eixos do livro. O primeiro é da relação de sua família com Gregor. Antes um provedor da família, Gregor agora passa de arrimo de família para um fardo. A simples mudança física que lhe ocorre muda toda a relação em seu microverso familiar, tendo três principais pontos de virada: a) A irmã, que passa a um amadurecimento “forçado” e avança como único elo entre Gregor e sua família; b) A mãe, que tenta enfrentar o asco pela forma de seu filho, mas, por fim, sucumbe ao nojo e à indiferença e; c) O pai, que estava em uma situação confortável de aposentadoria e ganhando peso, obriga-se a voltar a trabalhar e a emagrecer.
O segundo eixo de transformação em específico é a casa, cenário que é modificado e adaptado ao decorrer da relevância que Gregor tem na família. Em um primeiro momento, ele fica reservado em seu quarto, tentando avançar na compreensão de sua nova forma e interagindo com a irmã. Ao longo do terceiro ato, sua existência e espaço é dado à ignorância e ao passo em que a casa é deixada para aluguel e abandonada, assim como Gregor.
O incômodo que nos traz A Metamorfose é especialmente sobre a natureza humana e o que nos constitui como humanos. É nossa aparência? É a forma? É a nossa cor? É nosso organismo? Historicamente, não existe uma definição fechada e clara do que é ser humano, já que em si é um conceito formado e definido socialmente. Pode parecer estranho, mas vale lembrar que há menos de 150 anos havia pessoas dotadas de direitos e “humanidade” e outras que não, apenas como pura mercadoria, por uma breve definição de pigmentação epitelial. Trazendo isso para A Metamorfose, percebemos que, mesmo em sua forma insectóide, Gregor pensava com candura e preocupação para com seus familiares, sempre pondo em primeiro lugar o conforto de seus entes queridos. Em contrapartida, a família apresenta uma frieza com Gregor, nos levando a perguntar: quem nos passa a sensação de maior humanidade?
Como a questão de humanidade é constituída socialmente, podemos entender que, portanto, a função e reprodução social é o que leva também à constituição subjetiva e intersubjetiva do indivíduo. Isso é demonstrado quando Gregor, mesmo transformado, preocupa-se, inicialmente, mais com seu trabalho e não consigo. Ele se reconhece e entende sua função social como provedor de sua casa e primogênito após o pai não conseguir mais trabalhar. Como ele trabalha como caixeiro viajante, precisa pegar um trem para ir trabalhar e seu imediato pensamento é como não perder o emprego mesmo “doente” e não se atrasar. Note que nesse momento ficam claros sua angústia e o ódio pelo trabalho que o vilipendia toda vez que vai trabalhar, que seu sonho é terminar seu emprego para quitar uma dívida de seu pai. Perceba que ele se sente todo dia um inseto perante o que faz, sua subjetividade forçada a se resumir ao que se efetiva para a reprodução social: um provedor em uma família. Um papel que não escolhe e que apenas lhe coube. E vale ressaltar que, para o seu gerente, pouco importava sua doença ou problema. A meta precisava ser batida, a venda tinha de acontecer. Para seu empregador, ele, mesmo humano, não passava de uma coisa: uma mercadoria vendendo outra.
“Aqueles que dedicam suas vidas para ganhar para viver são incapazes de viver uma existência humana”
(Hebert Marcuse, em O Homem Unidimensional)
Ainda que esse clássico livro nos leve à reflexão sobre o conceito do humano e lidar com o imponderável, há certas questões em sua escrita que podem incomodar. Para muitos, a crueza com a qual Kafka escreve pode tornar mais direta sua mensagem e, para outros, pode parecer que haja uma falta de elegância e literacidade. Encontro-me dentro do segundo. A dureza com que escreve e a falta de uma linguagem mais rebuscada podem fazer parecer que perdemos nuances dentro do conto. Por mais que seja da intenção e característica do autor tratar suas obras da maneira mais realista possível, isso não o exime de cair na crítica de falta de refino na condução dos parágrafos e da história. A escolha pela narração em terceira pessoa e a falta de diálogos auxilia nessa percepção.
A Metamorfose de Kafka é um livro que melhora a partir da dualidade existente a partir do distanciamento da leitura e do aprofundamento na absorção e reflexão sobre a mesma. Por conta desse processo em que a obra cresce a partir do momento em que você a termina é que o livro perdura por mais de 100 anos como um clássico e o começo no mundo da literatura para muitos. Mesmo que não seja o melhor Kafka, A Metamorfose é um clássico obrigatório para ser lido e discutido.
A Metamorfose foi o primeiro livro debatido no Puxando da Estante, nosso podcast literário e clube do livro, por sugestão de Rob Teles. Confira:
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