A nova produção do Prime Video, Manhãs de Setembro, narra a história de Cassandra (Liniker), uma mulher trans que trabalha como motogirl e tem a música como sonho. Apesar das inúmeras dificuldades, Cassandra vive um momento de comemoração: conseguiu alugar uma kitnet, está em um relacionamento que a faz feliz e tem conseguido apresentar-se em algumas noites em um bar. Já no início, a veneração de Cassandra pela cantora Vanusa é evidente, e ao longo da série esse laço se torna ainda mais nítido.
Manhãs de Setembro tem 5 episódios de aproximadamente 35 minutos e seu enredo se desenvolve a partir do aparecimento inesperado de Gersinho (Gustavo Coelho). O menino tem 10 anos e afirma ser filho de Cassandra, fruto de uma relação com Leide (Karine Telles), ocorrida antes da transição da protagonista.
Apesar de serem poucos episódios, os personagens são construídos de uma maneira que torna fácil sentir-se conectado a eles, assim como experimentar alegrias e incômodos em relação às escolhas feitas ao longo da história. Isso para mim foi um dos pontos positivos de Manhãs de Setembro, pois escapa às próprias expectativas do que esperamos que o personagem faça em determinadas situações.
O contexto complexo em que Cassandra é colocada ao descobrir após dez anos que tem um filho nos faz compreender sua dificuldade inicial em aceitar que Leide e Gersinho façam parte de sua vida. Isso não anula o desconforto sentido em algumas cenas que Cassandra protagoniza com o filho, mas acaba sendo também o ponto forte da série, uma vez que os dilemas e conflitos dos personagens são expostos de maneiras muito reais. A narrativa que nos é apresentada se desenvolve em um emaranhado de ambiguidades que faz com que os julgamentos morais que possam surgir sejam desconstruídos a cada nova cena.
Em uma coletiva de imprensa, a roteirista Alice Marcone explicou a relação entre a escolha da música que dá nome àsérie e o próprio desenvolvimento da personagem Cassandra:
A gente acha que essa música […] reflete muito o movimento dramático da personagem, seus conflitos, as escolhas que ela fez e faz durante a série e até mesmo antes de entrarmos na narrativa. Decidimos manter pela irreverência na letra e pelo que Vanusa representa enquanto uma das cantoras que trouxeram o feminismo, a independência, o sofrimento e o amor mais interessante para a música popular brasileira.
Outra personagem complexa e que ganha bastante destaque é Leide, mãe solo por 10 anos e vendedora ambulante. Em uma situação de extrema vulnerabilidade, Leide e Gersinho não têm uma casa e são obrigados a dormir em um carro. Várias são as dificuldades enfrentadas por ela, e a decisão de procurar Cassandra se dá pela necessidade constante exposta por Gersinho em conhecer seu pai.
Apesar de escolhas questionáveis ao longo da trama e de cenas onde a personagem reproduz falas e comportamentos transfóbicos, é possível encontrar pontos de encontro nas dificuldades vivenciadas por Cassandra e Leide. As duas enfrentam uma realidade de abandono em um contexto político e social que tende a limitar as possibilidades de vida, sobretudo para mulheres. O desenvolvimento da personagem traz à tona novamente o aspecto complexo da narrativa, que produz inúmeros desconfortos. Entretanto, ao mesmo tempo, desarma o público por não ser possível realizar um julgamento fechado e moralista sobre cada escolha tomada pelos personagens.
A própria Karine conta em entrevistas sobre os desafios ao longo da produção de Manhãs de Setembro:
Alguns comportamentos da minha personagem foram desafiadores porque são muito diferentes do que eu faria. E algumas situações de embate entre a Leide e a Cassandra também foram um desafio para que eu não apresentasse um julgamento da personagem, ao invés de me colocar no lugar dela e estar de fato lá. Foi um trabalho de entender os limites aos quais ela está exposta, porque ela está vivendo de maneira muito precária e com um extinto de sobrevivência muito aflorado. Tem coisas que ela está fazendo para se manter viva. O desafio foi encontrar esses lugares dentro de mim em que eu pudesse emprestar alguma autenticidade a esses comportamentos repreensíveis.
O personagem de Gersinho também se constrói de modo sensível. É possível acompanhar a necessidade por parte dele em ser aceito por Cassandra, e em obter reciprocidade no afeto que desenvolve por ela tão rápido. O amor, a simplicidade e até mesmo a ingenuidade de Gersinho são essenciais para provocar rupturas em um contexto composto por pessoas calejadas pelos desafios do cotidiano. Outras relações também ganham destaque, como a amizade entre Roberta (Clodd Dias), Cassandra e Pedrita (Linn da Quebrada), o laço afetivo entre Cassandra e o casal Arístides e Décio (Gero Camilo e Paulo Miklos), assim como o relacionamento entre Ivaldo (Tomás Aquino) e Cassandra.
Todos esses personagens acabam por constituir uma rede de apoio e afeto para Cassandra. O desenvolvimento disso de maneira tão cuidadosa dá um toque especial a Manhãs de Setembro, uma vez que escapa de uma produção pautada em uma representatividade vazia. A história trata sobretudo da potência dos encontros e da capacidade dos afetos de provocarem transformações e novas formas de experimentar e enxergar a vida.
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