Não acredito em pressentimentos, e augúrios
(Arseny Tarkovsky)
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.
Obra mais pessoal do lendário cineasta russo Andrei Tarkovsky, O Espelho (Zerkalo, 1975) é uma experiência única, tanto no aspecto visual e sonoro quanto por sua lírica poética. Trata-se de uma nova forma de expressão cinematográfica sinestésica, que dialoga constantemente com outras artes e que não obedece a uma lógica narrativa, mas a uma associação de ideias, recordações, percepções, sonhos e acontecimentos. Para isso, a montagem alinear do longa opera de maneira similar ao funcionamento da memória, evocando a inocência da infância e as repercussões do legado familiar. Servindo-se do cinema para explorar a sua própria psique, Tarkovsky compôs uma espécie de autobiografia abstrata, correlacionando, de forma harmônica e indissolúvel, acontecimentos reais da sua vida; fragmentos de filmagens de arquivo da Segunda Guerra Mundial; elementos ficcionais ou metaficcionais; e os poemas elegíacos de Arseny Tarkovsky (pai do cineasta), declamados pelo autor de modo não diegético durante o transcorrer do filme.
Aleksei, o narrador do filme – interpretado por Andrei Tarkovsky –, encontra-se em seu leito de morte, provavelmente em decorrência de alguma doença grave, e passa a recordar, repleto de remorso e nostalgia, diversos momentos da sua vida. A partir dessa premissa simples, a obra conduz o espectador pelo fluxo de consciência de Aleksei, espelhando no público os mesmos sentimentos e sensações intimamente confidenciados pelo protagonista diante da confrontação com as suas memórias. Além de utilizar os poemas do seu pai e de interpretar o personagem principal, o diretor também emprega outros elementos que intensificam o tom autobiográfico do longa – inclusive, grande parte das cenas se passa em uma réplica da casa onde Tarkovsky viveu na infância, construída no mesmo local em que ela outrora existiu. Por conseguinte, é possível contemplar a jornada do narrador como um espelho da vida do cineasta, ou, mais especificamente, como a maneira que este encontrou de revelar ao público certas coisas que, nos dizeres de Dostoiévski (seu mais célebre conterrâneo), o homem teme revelar até a si mesmo:
“Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas há também, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio, e, em cada homem honesto, acumula-se um número considerável de coisas do gênero.”
(DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 52. Tradução: Boris Schnaiderman)
O espelho, enquanto objeto, aparece frequentemente durante o filme, funcionando muitas vezes como um recurso de transição temporal ou de alternância entre sonho e realidade. A cena em que Aleksei, ainda criança, encara seu reflexo em frente a um grande espelho – a câmera se aproxima lentamente, focalizando cada vez mais no reflexo, até que este torna-se a única imagem no plano –, simboliza com maestria a transfiguração do real em abstrato, conectando os dois mundos da filosofia dualista Platônica (mundo dos sentidos e mundo das ideias). Tematicamente, a ideia do espelho está contida no paralelo criado entre alguns acontecimentos que se repetem nas diferentes gerações retratadas, criando uma espécie de círculo vicioso, e no fato de os mesmos atores representarem mais de um personagem, em épocas distintas, sugerindo que algumas vidas são reflexos de outras.
Os diversos recursos sonoros e de imagem adotados pelo diretor, desde a alternância de cenas em cor para preto e branco ou sépia, à sobreposição de imagens documentais da guerra com a voz de seu pai, acompanhadas de uma trilha sonora deliberadamente artificial, resultam em uma manifestação simultânea de múltiplas temporalidades, que remetem à ideia de “imortalidade”, estimulando uma reflexão metafísica acerca da percepção de passagem e preservação do tempo. A hipnótica e comovente cena final, ao som excelso de Johann Sebastian Bach, demonstra que o passado, com todo seu peso, estará sempre coexistindo com o presente. Tudo em O Espelho é dotado de uma intensidade rara, pois o filme representa a quintessência do universo particular de um indivíduo que, confrontado com a morte, relembra a vida, em todas as suas nuances e paradoxos. Tarkovsky alcançou, neste longa-metragem, sua mais profunda e comovente forma de expressão. Uma obra essencial que, muito mais do que compreendida, precisa ser sentida.
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