Qual foi a última vez que você ouviu uma banda ou artista do top 10 das paradas que fosse famoso pela sua habilidade na guitarra? Ou uma música entre as top 10 que tivesse como principal elemento um riff ou um solo marcante? A queda no interesse ou presença do instrumento mais popular do século XX na música atual é tanta que até a marca símbolo da guitarra, a Gibson, pediu falência em 2018 e deixou o mundo musical em alerta para a possível morte da guitarra. Um dos elementos mais apontados para essa queda é o desinteresse dos jovens no instrumento, além do avanço de processos de composição e produção musical cada vez mais eletrônicos, sem a necessidade de elementos orgânicos. Em meio a uma selva de beats e sintetizadores, ainda há espaço para a guitarra sobreviver e/ou se adaptar? A resposta é: óbvio que sim, e a banda Polyphia mostra como.
A banda Polyphia é um quarteto de músicos do Texas que segue a clássica composição de bandas de rock com dois guitarristas, um baixista e um baterista. Até aí, tudo normal em relação ao que se poderia esperar, sendo talvez a única surpresa o fato de serem jovens tocando rock instrumental com poderosos solos e guitarras que “cantam”. Outro ponto que talvez tire a banda do estereótipo de bandas de rock é o visual mais próximo a boy bands ou a artistas de trap, quebrando o aspecto de cabeludos vestidos de preto e calça de couro de guitarristas dos anos 1980/1990. Mas quem vê o Polyphia, julga e não ouve, apenas está perdendo uma das bandas instrumentais mais influentes no mundo. Isso mesmo, jovens abaixo de 30 anos estando entre os principais artistas do gênero e as principais influências para que muitas novas pessoas tenham retomado o interesse na guitarra. E muito por conta da música que abordaremos aqui: G.O.A.T.
G.O.A.T. (acrônimo para “maior de todos os tempos”, do inglês “greatest of all time”) foi a música que trouxe a banda para além de seu nicho. Polyphia já era conhecida entre quem gostava de músicas instrumentais, especialmente os fãs de guitarra. Nos primeiros dois álbuns, os solos de Tim Henson e Scott LePage já eram conhecidos por se aproximarem de bandas pop, pela mudança de tempo nas transições das músicas e pelo foco na polifonia (utilização de harmônicos nas vozes dos instrumentos principais, tocando “coisas” diferentes, mas que “conversam”) — algo impressionante, especialmente pela idade dos músicos, mas nada que aparentasse uma grande inovação.
Eis que, em 2017, eles lançam um EP chamado The Most Hated em que experimentam utilizar beats e realizar uma incisiva aproximação com o rap e o trap. O EP não foi um sucesso e, segundo o próprio Tim, foi uma obra lançada à frente de seu tempo. Novos elementos de composição foram testados nele e utilizados na composição do álbum seguinte, New Levels New Devils, de 2018, onde se encontra nosso foco de análise.
O nome da música não é por acaso. Se você pesquisar sobre a música no Youtube, verá vários vídeos intitulados “aprendendo o riff de guitarra mais difícil do mundo”, “perdi minha vida e não aprendi essa música”, “compositor de rap/metal/rock/clássica/jazz reagem”, etc. Só para ter noção do impacto na rede, em 90% das vezes a reação virá de quem nunca ouviu a banda e todos ficam embasbacados. Como esses caras fizeram essa música? É possível tocar guitarra desse jeito? Essa música é um rap instrumental, um jazz ou um rock? É possível fazer isso ao vivo ou é editado? São essas as perguntas que são feitas em quase todos os vídeos e só reforçam como nem a guitarra está morrendo nem a música está entediante e repetitiva.
Para uma audição guiada para a música G.O.A.T., vou recomendar dois vídeos de reação de dois músicos para explicarem por que ela é especial e como é de difícil execução. O foco do primeiro, realizado pelo compositor Michael Palmisano, é mais em aspectos de produção e de ritmo. Michael já de início fica embasbacado pelo riff principal, que é muito incomum e já soa como algo diferente. O tom de guitarra limpa — sem distorções — apresenta uma execução de notas rápidas impressionante e que mistura várias técnicas em um elemento só, como tapping, ghost notes, harmônicos, hybrid picking e arpeggios. Ou seja, quase tudo que você ouviria em um solo, e que muitos solos nem têm, você ouve em menos de 10 segundos de música e sem distorções ou truques. Logo em seguida entra na bateria Clay Aeschliman e no baixo Clay Gober, e é onde a música já dá uma amostra real do que será: uma música instrumental com guitarra, mas cujo foco é o ritmo. Aeschliman é um monstro e ele é enaltecido pelo Michael Palmisano no vídeo inteiro, pois ele realmente traz a batida da música e tem uma gigantesca sincronia com a melodia das guitarras e o ritmo do baixo. Na sessão do baixo e no solo final da guitarra isso fica bem claro. Preste atenção nas viradas da bateria sincronizadas com as notas. O que mais impressiona Palmisano é essa sincronia, como cada instrumento faz sua parte, mas, ao mesmo tempo, cada uma depende da outra, mesmo tocando coisas diferentes. No final do vídeo ele vai checar se eles conseguem fazer ao vivo. E, sim, eles fazem.
O segundo vídeo que indico para ver escutando G.O.A.T. é o do guitarrista Marcelo Barbosa. Marcelo é guitarrista das bandas Almah e Angra, um grande nome do metal nacional e também famoso professor de música. A abordagem dele é mais voltada para a composição harmônica da música. A composição é cheia de mudanças de campos harmônicos, como não poderia ser diferente. Além disso, há a escolha, como explica Marcelo, por notas de escalas diferentes da habitual, uma seleção de notas dissonantes, mas que serviram para compor trechos mais “soturnos”. O que é claro é que essas escolhas não são aleatórias, não são amadores ou jovens que não conhecem de teoria musical para compor. E o que mais impressiona Marcelo é justamente como ele crê que tenha sido composta a música: a partir de um computador e depois passando para a guitarra. Ele não é fã do método, mas afirma que é impressionante como o método faz com que depois o guitarrista tenha que forçosamente tocar aquilo na guitarra e soar bem, o que pode elevar ainda mais o nível de guitarristas e aparição de novas técnicas.
Marcelo não estava errado. Tim Henson, em seu canal no Youtube, mostrou como ele compôs a música e que inspiração ele teve para fazê-la. E foi nada mais, nada menos, que uma música do Jaden Smith. Ele escutou a batida e imaginou o que poderia pôr para compor em cima, e começou a escrever no piano imaginando como seria uma execução de rima em forma de notas. A partir disso começou a testar na guitarra como essas notas soariam e aperfeiçoar para soar mais natural e orgânico. No vídeo, é muito importante notar como as batidas de trap e a guitarra composta se encaixam de modo perfeito e como o Tim fala de modo tranquilo, mostrando o domínio que tem em termos de composição. Quem poderia imaginar que “o riff mais difícil do mundo” viria de uma música de trap?
Polyphia trouxe luz a um movimento de novos guitarristas no Instagram e Youtube que passam a influenciar uma nova geração de guitarristas. Mais conectados com as novas plataformas sociais e com sons mais modernos, tem se destacado nesses novos músicos um estilo de tocar limpo, sem distorções que tragam mais peso, além de uma absurda técnica. Guitarristas como Ichika Nito e o brasileiro Mateus Asato — ambos têm participação no álbum New Levels New Demons do Polyphia — são representantes dessa nova safra, em que se mostra mais técnica e melodias no som limpo da guitarra do que o peso do metal ou do rock das décadas anteriores. Pode ser que a fama que esses músicos trazem da internet gere interesse em mais pessoas a buscarem tocar guitarra e conhecerem os clássicos. Ressaltando que o guitarrista favorito de Tim Henson do Polyphia é o Jimi Hendrix, um clássico.
G.O.A.T. não é apenas uma música se você ouve com os ouvidos corretos. É uma experiência que dentro de si debate como a música moderna não perdeu ainda seus laços com a arte e que, se insistirmos nos mesmos modos de composição, não se sai do lugar. É muito comum ouvir nos meios de guitarristas que os guitar heroes estão mortos, que não existem mais esses personagens. Talvez não existam mais do jeito de antes. Assim como o próprio jogo Guitar Hero trouxe novas pessoas para a música e para a guitarra, os músicos de redes sociais e bandas instrumentais que experimentam ousar com outros estilos que estão nas paradas de sucesso podem reacender o interesse pelo instrumento. O jeito de fazer música mudou, mas a música continua eterna.
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