Quando Eleanor Shellstrop (Kristen Bell) abre os olhos, se encontra sentada no sofá de uma sala de espera. À sua frente, os dizeres: “Bem-vinda! Está tudo bem.”
Michael (Ted Danson) a recebe em seu escritório e explica o que está acontecendo: Eleanor está morta e se encontra no Lugar Bom, uma espécie de vila para onde vão depois de morrer as pessoas que foram muito boas em vida. Michael é o arquiteto dessa vila específica, e é ele que recepciona todos os residentes e explica onde estão e como funciona. Lá, cada um tem sua casa personalizada para seus gostos e uma alma gêmea predeterminada, que no caso de Eleanor é o professor senegalês Chidi Anagonye (William Jackson Harper). Além disso, o ser mais inteligente e poderoso do mundo, Janet (D’Arcy Carden), pode materializar tudo que você quiser e responder qualquer pergunta que possa ter.
O problema, ao menos para Eleanor, é que ela não deveria estar ali.
Aparentemente, existe outra Eleanor Shellstrop, advogada envolvida em diversos projetos humanitários, com quem a protagonista foi confundida. Revelar e correr o risco de ir para o Lugar Ruim não parece uma opção nada legal, então Eleanor pede a ajuda de sua alma gêmea para guardar seu segredo e para ensiná-la a ser uma pessoa melhor. Chidi era professor de Filosofia Moral/Ética, então parece a escolha certa para um trabalho desses.
Completando o elenco principal, temos Tahani Al-Jamil (Jameela Jamil), socialite humanitarista que não perde uma oportunidade de falar sobre seus amigos famosos, de Bono a Taylor Swift, e Jianyu (Manny Jacinto), monge budista que fez um voto de silêncio — mas que, assim como Eleanor, parece esconder um segredo. Todos os personagens são fundamentalmente humanos, cheios de defeitos (explorados em flashbacks de suas vidas), e parte de seus arcos na série consiste em aceitar suas falhas e buscar tornar-se pessoas melhores. Tudo isso vem acompanhado pelos comentários de Michael e Janet, ávidos entusiastas da condição humana e toda sua complexidade.
The Good Place combina leveza com um estilo de humor inteligente e afiado, recorrendo a situações absurdas como forma de comentário social. É um humor mais próximo daquele das comédias britânicas, em contraponto às produções americanas que usam mais piadas visuais, consagradas nas comédias pastelão dos anos 1930. As principais fontes de humor da série são dilemas éticos e filosóficos, cultura pop e as incoerências do ser humano.
No começo deste ano, quando a série acabou, a Superinteressante até fez uma matéria comentando alguns dos conceitos filosóficos mais presentes (a lista contém casos de todas as temporadas, então pode ser spoiler). Um episódio literalmente materializa o famoso Dilema do Bonde em diversas variações, para mostrar o valor da vida e a dificuldade da escolha moral. Em outro, uma das minhas piadas favoritas de todos os tempos:
Cada temporada tem um tema central, e uma grande revelação ou reviravolta no final. Alguns dos principais pontos de discussão e reflexão que a série levanta são: O que significa ser bom, especialmente nos dias de hoje? O ser humano é capaz de melhorar, aprender e se redimir? O que dá sentido à vida? O que faz de você o que você é, mesmo alterando o ambiente à sua volta? É possível separar a arte do artista? Existe consumo consciente no capitalismo? Sim, eu juro que até nisso dá pra entrar.
A série até mesmo faz piada com as diferentes percepções do conceito de certo e errado, moralidade e comportamento socialmente aceitável através das eras. Em certo momento, descobrimos que certas pessoas que alguns acreditavam estar no Lugar Bom por suas contribuições históricas acabaram indo para o Lugar Ruim. Não por suas contribuições não terem sido importantes, mas porque eram escravocratas, por exemplo. E, com o que parecia ser uma simples piada, The Good Place passa mais uma de suas várias mensagens para o público moderno: você não tem como ser uma pessoa boa se acredita que uma etnia, gênero, sexualidade ou identidade é superior a outra, se não acredita que as pessoas devem ser tratadas com equidade.
Várias fontes afirmam que a inspiração primária de The Good Place é a peça Entre Quatro Paredes (No Exit, ou Huis Clos), de Jean-Paul Sartre. É de lá que vem a célebre frase “o inferno são os outros” (“hell is other people”), que até deu nome a um episódio da quarta temporada, “help is other people” (em português, ficou “ajuda é outra pessoa”). Um texto excelente do The Atlantic (em inglês, com spoilers até do final) diz que “a sitcom da NBC se apresenta como uma coisa (uma comédia sobre uma mulher que foi parar no céu acidentalmente) e revela que era outra: uma comédia sobre filosofia, moral e o sentido da vida”.
Kristen Bell foi o principal motivo que me levou a assistir à série, mas foi todo o conjunto da obra que a tornou uma das minhas favoritas. Já fui conquistada na primeira cena. Além de me identificar com o tipo de humor, os personagens são cativantes e é possível se ver neles em vários momentos — bons e ruins. Talvez o mais impressionante, na minha opinião, seja a capacidade de surpreender o espectador com alguma revelação ou proposta absurda e não estragar tudo logo em seguida. Há vários momentos que você tem certeza de que não vão funcionar, ou que passam a impressão de que a partir dali a série não será mais a mesma. Em todos eles, porém, a surpresa é positiva e a qualidade e a coesão se mantêm.
A emissora original de The Good Place era a NBC, e fora dos EUA a Netflix tem os direitos de exibição, ao menos na maioria dos países. Apesar das restrições do formato de uma série de comédia tradicional, com episódios de 22 minutos com pausa para intervalos, a série consegue transmitir sua mensagem e abordar diversos tópicos complexos sem perder o tom leve e agradável. A série ficou no ar por quatro temporadas de 13 episódios, sendo o último deles duplo, e terminou em seu auge, sem perder o fôlego e sem dar tempo de cansar ou se perder. É de você mesma que estou falando, Supernatural.
The Good Place quer que você seja melhor hoje do que foi ontem, e que você se divirta. Se isso não é algo que vale a pena ver, eu não sei o que é.
[PS: Agradecimentos especiais ao amigo Bruno, que ajudou a transformar a bagunça de pensamentos em um texto de verdade!]
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