“A propaganda faz essas pessoas irem atrás de carros e roupas de que elas não precisam. Gerações têm trabalhado em empregos que odeiam para poder comprar coisas de que realmente não precisam. – Não temos uma grande guerra em nossa geração ou uma grande depressão, mas na verdade temos, sim, é uma grande guerra de espírito. Temos uma grande revolução contra a cultura. A grande depressão é a nossa vida. Temos uma depressão espiritual.”
(Clube da Luta – PALAHNIUK, Chuck)
Provavelmente, não há nada para falar sobre Clube da Luta que já não tenha sido exaurido e esmiuçado de todas as maneiras possíveis. O que leva a crer, inequivocamente, que as duas primeiras regras do clube da luta vêm sendo descumpridas em reiteradas ocasiões. Mesmo partindo da premissa de que grande parte dos interessados por cinema e literatura, ainda que de forma ínfima, já tenham assistido ao filme ou lido a obra homônima na qual o filme foi baseado, é imperioso ressaltar a presença de inúmeros spoilers na análise crítica que se segue.
Lançada em 1999, a versão cinematográfica dirigida por David Fincher (Seven – Os Sete Crimes Capitais, Garota Exemplar e A Rede Social) parte da mesma premissa do livro, escrito três anos antes por Chuck Palahniuk, porém apresenta algumas diferenças substanciais, principalmente no que diz respeito ao encontro do Narrador com Tyler Durden, um dos momentos mais memoráveis do longa, e ao final propriamente dito. Ademais, vale salientar que o final do filme é alçado a outro patamar ao som de Where Is My Mind?, do Pixies.
Em um caso atípico e diametralmente oposto às inúmeras adaptações literárias de qualidade duvidosa (para ser eufêmico), que parecem brotar nas salas de cinema, o longa conseguiu a proeza de superar o seu material de origem, entrando para um seleto rol onde figuram algumas obras icônicas, como O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola), Laranja Mecânica (Stanley Kubrick) e O Silêncio dos Inocentes (Jonathan Demme). Nesse diapasão, o próprio autor, em entrevista, já admitiu que o filme foi um aperfeiçoamento de sua obra, simplificando e apresentando a narrativa de maneira muito mais efetiva, inclusive, estabelecendo conexões que ele gostaria de ter feito anteriormente em seu livro.
O trabalho de direção de Fincher é extremamente preciso, o que não pode ser considerado uma novidade para os que conhecem sua meticulosidade e perfeccionismo. É um deleite observar a maestria com que o diretor consegue conectar todos os elementos que compõem o filme (edição, fotografia, trilha sonora, paleta de cores, atuações, efeitos visuais…), de maneira que beira a perfeição. Cada detalhe possui sua relevância e está propositalmente inserido nos frames para transmitir determinada mensagem ou sensação, fazendo com que cada revisita ao filme seja uma experiência diferente e inovadora. Afinal, costuma revelar sutilezas outrora despercebidas.
A título de curiosidade, a ânsia de Fincher em adaptar Clube da Luta para as telas era tanta que viabilizou o restabelecimento da traumática parceria com a Fox, estúdio responsável pelo fiasco de seu primeiro filme (Alien 3). Experiência que, por muito pouco, não fez com que o diretor desistisse de sua carreira no cinema, após ter sido “sodomizado ritualisticamente durante dois anos”, parafraseando as palavras do mesmo. Gozando, finalmente, da liberdade criativa que lhe havia sido tolhida em sua vivência com a Fox, David Fincher nos entregou uma das maiores obras-primas da história do cinema.
A trama do filme é apresentada sob a perspectiva do Narrador (Edward Norton), um sujeito deprimido e insone que, ao conhecer Tyler Durden (Brad Pitt) e fundar com ele um “clube da luta” – posteriormente transmutado em uma organização antimaterialista e anticapitalista denominada Project Mayhem (Projeto Destruição) –, embarca em uma jornada de violência e autodesconstrução. Contudo, como diria Oscar Wilde, definir é limitar, e limitar essa obra a uma sinopse simplória seria uma afronta à sua genialidade, principalmente se tal limitação se der em detrimento dos incontáveis elementos, presentes no roteiro, que instigam debates nos âmbitos sociais, políticos, econômicos e psicológicos.
O caótico processo de desconstrução do Narrador pode ser compreendido como uma emancipação progressiva quanto aos preceitos impostos pela sociedade, quanto à alienação e frustração do homem moderno e, especialmente, quanto ao consumismo desenfreado, calcado na desesperada e infrutífera tentativa de preenchimento do vazio existencial. A violência, por sua vez, é mostrada de maneira bastante crua, dispensando o viés heroico presente na maioria dos filmes, e retratando de maneira contundente o machismo tóxico da nossa sociedade, onde a forma mais comum de expressão masculina se dá através da raiva e da liberação de ímpetos violentos.
Sugerida sutilmente em diversas pistas, a grande reviravolta ocorre com a revelação de que o Narrador e Tyler Durden são a mesma pessoa, duas personalidades coabitando o mesmo corpo. Tyler é, portanto, uma projeção do ideal almejado pelo Narrador, ou seja, a representação de tudo o que ele gostaria de ser. Analisando o personagem principal sob um viés psicopatológico, é possível constatar que ele apresenta características semelhantes às do Transtorno Dissociativo de Personalidade, que tem como aspecto principal a existência de duas ou mais identidades ou estados de personalidade distintos no mesmo indivíduo.
Esse transtorno é reflexo do fracasso na integração de diversos fatores da memória e da consciência. Além disso, é relativamente comum que cada estado de personalidade seja dotado de identidade própria e que assuma, alternadamente, o controle do comportamento. No filme, o surgimento dessa persona ocorre de modo gradativo, em conformidade com a progressão do distúrbio do Narrador, e passa a ampliar cada vez mais o seu domínio sobre o protagonista.
Para compreender as raízes desse distúrbio, é imprescindível uma noção básica acerca do modelo estrutural da personalidade, construído por Sigmund Freud para explicar o funcionamento da mente humana, considerando o processo de interação entre os aspectos conscientes e inconscientes do cérebro. Nessa temática, abordada em “Além do princípio do prazer”, foram desenvolvidos três conceitos que, atuando em conjunto, determinam e coordenam o comportamento humano: Id, Ego e Superego.
Id, regido pelo “princípio do prazer”, está tão profundamente relacionado à libido, que desconhece valores éticos e morais, e atua a partir dos impulsos mais primitivos. Composto por desejos e instintos, o Id dispensa valorações de certo ou errado, e não se preocupa com as consequências dos atos, contanto que se obtenha a satisfação almejada. Isso lhe confere uma natureza amoral. Essencialmente antagônico ao Id, o Superego é o componente moral e social da personalidade, podendo ser visto como uma instância repressora. Guiado, por sua vez, pelo “princípio do dever”, o Superego detém função inibidora dos instintos, obstando impulsos contrários às regras e valores vigentes na sociedade.
Por último, mas de suma importância para a psiquê humana, o Ego é considerado a parte racional da mente, responsável por funções como percepção, memória, sentimentos e pensamentos. Calcado no “princípio da realidade”, o Ego funciona como principal mecanismo de interação entre os impulsos do Id, a repressão do Superego e o ambiente social externo, atuando como mediador para possibilitar que se alcance o equilíbrio entre satisfações pessoais e obrigações sociais.
Em síntese, existe uma disputa constante entre Id e Superego para assumir o controle comportamental, uma vez que representam necessidades e impulsos completamente opostos, recaindo sobre o Ego a árdua missão de equilibrar esses lados tão distintos da personalidade. Diante da explanação superficial desses conceitos freudianos, a origem do distúrbio apresentado pelo protagonista pode ser interpretada como uma falha ou, até mesmo, como a completa inexistência da atuação do Ego, que acarreta um grave desajuste psicológico.
A partir do momento em que a função mediadora do Ego é suprimida, o Narrador passa a ser absolutamente reprimido pelo Superego, em uma espécie de submissão involuntária aos fúteis e, muitas vezes, nocivos vícios sociais. Ocorre que, como resposta direta à desmedida e desproporcional sublimação das pulsões do Narrador, o Id reage e se liberta na forma irreverente de Tyler Durden.
Todavia, na conclusão, fica evidente que a passagem do estado reprimido, dominado pelo Superego, diretamente para o estado de rebeldia própria do Id, não funciona como libertação, mas apenas como uma forma diversa de prisão. A figura libertadora de Tyler é falaciosa e oportunista, fazendo com que seus seguidores, incluindo sua “identidade primária”, deixem de ser reféns de um sistema social opressor, para se tornar reféns dos seus interesses e desejos pessoais. Ao oferecer um propósito a incontáveis indivíduos imotivados e insatisfeitos, Tyler utiliza o falso pretexto da desalienação meramente como uma forma de alienar para o que lhe convém. Mesmo decorridos mais de vinte anos do seu lançamento, o filme é ainda mais pertinente nos dias atuais, sobretudo considerando o contexto sociopolítico, no qual parece ter entrado em voga uma absurda retomada de valores e conceitos retrógrados e antiquados. Infelizmente – citando as sábias palavras de Bukowski –, “a raça humana exagera em tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância”.
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