Com direção de Jeferson De, M8 – Quando a Morte Socorre a Vida conta a história de Maurício (Juan Paiva), um jovem preto periférico que entra em uma renomada faculdade pública de Medicina. Disponibilizado no catálogo da Netflix em 2020, o longa aborda temas do cotidiano da sociedade brasileira.
M8 inicia com Maurício buscando sua sala para o que aparenta ser a primeira aula de Anatomia. Ao encontrá-la, percebe que os únicos corpos pretos na turma, além do protagonista, são os que serão dissecados e estudados pelos alunos. O racismo gritante gera uma inquietação e, enquanto tenta tranquilizar sua mente para os estudos, ele começa a ter alucinações com o M8, o corpo estudado pelo seu grupo.
O primeiro e principal tema do filme é o racismo estrutural que permeia a sociedade, evidenciado desde os primeiros minutos de filme e levado sempre em pauta em simples acontecimentos. Todos os pretos do filme são colocados em papéis de servidão, desde os funcionários da faculdade até a mãe do protagonista, que é uma técnica de enfermagem que trabalha como cuidadora de um branco idoso.
Essa estrutura social racista vem sendo construída e enraizada no Brasil há séculos. Até mesmo a Lei Áurea, que “libertou” os escravos na época, o fez sem qualquer tipo de planejamento de reinserção dessas pessoas na sociedade como iguais. Os negros permaneceram à margem, sem emprego e sem condições mínimas de subsistência.
O segundo tema principal de M8 é como a estrutura social se autopreserva com pretos agredindo pretos. É o esquema “capitão do mato” no século XXI, onde alguns pretos têm uma posição social levemente mais elevada e privilegiada, porém ainda muito distante dos brancos ao redor. Isso serve para mascarar o racismo, pois, em tese, um preto não pode ser racista — o que traz uma outra problemática: falta de consciência de classe.
O preto não se reconhece como preto e, imerso em um ambiente dominado por brancos, ele não se reconhece naquele corpo e deseja ser diferente, fazendo com que ele endosse o racismo da classe a que ele serve. Temos dois momentos bem claros em que isso acontece em M8: quando Maurício sofre violência policial por ser um preto sozinho à noite em um bairro da Zona Sul; e quando um porteiro questiona a entrada do protagonista em um prédio rico, que claramente não seria um ambiente para ele.
O terceiro tema é religiosidade e ancestralidade. Durante todo o filme temos contato com a religião de Maurício e sua família, que é de matriz africana. Por muitas décadas, seus cultos foram proibidos por lei no Brasil, e até hoje ela segue marginalizada e sofre todo tipo de preconceito. Em vários momentos de M8, o contato com a religião é o momento em que Maurício pode obter respostas e ajuda para seus conflitos.
O quarto tema é o genocídio de pretos. Em algumas cenas, são apresentadas mães que procuram por seus filhos desaparecidos, cujos corpos parecem não significar nada, assim como o sentimento das famílias. Já diz a música de Elza Soares, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Esse arco está intimamente ligado às inquietações de Maurício quanto ao M8. Quem é aquele corpo? De onde ele veio? Quem é a família dele? E isso me lembra uma música do Emicida que diz “existe carne alva e carne alvo”. Esse arco se encerra junto com o filme, em uma cena absurdamente simbólica e impactante.
O quinto tema é um exemplo de uma filosofia africana: se eu ganho, minha comunidade ganha; e, se minha comunidade ganha, eu ganho. Os estudos sobre cultura e sociedade africana sempre foram ignorados na educação básica, ainda que, como sabemos, o continente africano tenha sido o berço da humanidade. Há uma filosofia africana conhecida como “Ubuntu”, traduzida literalmente como “humanidade para com os outros”, que é exemplificada em uma cena. Maurício, calouro de Medicina, foi chamado por uma vizinha que o conhece desde criança para analisar uma receita, pois ela confia mais em um jovem da comunidade que em um médico que ela nunca viu na vida. A vitória do jovem estudante de Medicina vai ser uma vitória da comunidade, que vai ter uma pessoa confiável para cuidar deles.
Apesar de tratar temas muito complexos de forma incrível, M8 – Quando a Morte Socorre a Vida tem uma falha estrutural de aproveitamento de cenas. Algumas cenas parecem desnecessárias, enquanto certos desenvolvimentos são deixados à interpretação de quem assiste. Alguns textos são vazios, enquanto outros são incríveis. A meu ver, o melhor diálogo é um entre Maurício e Cida, sua mãe, interpretada pela incrível Mariana Nunes. Essas falhas fazem o filme sair de uma obra-prima para um filme ok. Todavia, traz muita discussão e temas incríveis que valem a pena ser observados.
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