Em obras literárias ou cinematográficas, o tema da guerra é um lugar comum. Geralmente levada com um grau forte de romantização, a guerra sempre nos é apresentada no mundo pop como o local onde os extremos estão à tona e em combate. Normalmente, nessas obras observamos a braveza do soldado, a genialidade do generalato ou a crueza e sanguinolência das batalhas e até discursos edificantes como a superação do ser humano perante seus inimigos. Porém, se esse é o aspecto que vemos da guerra, é por geralmente sermos apresentados pelos atores “de cima” no escalão da guerra. Raramente somos apresentados à visão dos “de baixo” da guerra. Para suprir essa dura carência, Diego Guerra nos traz em O gigante da guerra (Crown) a visão daqueles que não são atores nos conflitos, mas sim suas principais vítimas.
O livro surgiu no desafio National Novel Writer Month (NaNoWriMo), em que o autor busca escrever um livro em 30 dias. Diego não só cumpriu o desafio em 2015 como conseguiu posteriormente publicar a obra pela Crown em 2017 — e hoje ela está disponível em eBook na Amazon. Saber desse fato reforça ainda mais o valor da obra, já que não aparenta ter sido escrita em tão curto tempo. Para executar essa façanha, Guerra usou seu mundo, o Império de Karis, como base. Isso facilita a escrita, diminuindo o tempo de pesquisa, tendo em vista que, segundo o próprio, a história poderia se passar em Minas Gerais ou em qualquer lugar, mas preferiu ambientar em seu próprio universo. A decisão também parece acertada por ampliar seu próprio universo iniciado em O teatro da ira sem perder a mensagem que a obra quer passar.
Muitos já estavam cansados da guerra. (…) Muitos desejavam a paz, muitos sonhavam com tempos remotos e mais pacíficos, muitos culpavam o Imperador pelas décadas de fome que substituíram as décadas de fartura e desejavam, embora jamais o dissessem em voz alta, que alguém mais sábio ocupasse o trono do Império. Lenna não era nenhum desses. A menina só tinha onze anos e tudo o que conhecia era a guerra.
A história se passa em meio à guerra civil entre os dhäeni, seres místicos escravizados do Império de Karis, contra os seres humanos em busca de liberdade após séculos de escravidão. Durante essa batalha, acompanhamos a vida de Lenna e Ward, dois irmãos que vivem em uma pobre vila com seu pai e tendo de batalhar dia-a-dia para sobreviver com o pouco que a fazenda dá. Entretanto, o pai é chamado para servir dentro do exército do Imperador para lutar, deixando para trás seus filhos sozinhos. Assim começa a luta de Ward e Lenna em uma realidade em que a pobreza generalizada eleva ao egoísmo mais básico como forma única de sobrevivência.
A guerra é um vórtice de recursos e vida que catalisa o que há de mais mesquinho nos seres humanos. Essa mensagem que perdura pela obra nos é apresentada logo no começo da narrativa como a posição da magistrada e do prelado como os pontos de autoridade na vila. Independentemente das dificuldades que as pessoas tivessem, a necessidade do esforço forçado coletivo para uma distante guerra levou ao confisco de comida e mantimentos de todos os moradores. Esse ponto é fundamental, pois, mesmo que fosse pouco, tinha de ser levado e o pagamento seria apenas no futuro quando a guerra acabasse. Assim, Ward e Lenna tentam esconder parte de seus grãos, mas o prelado descobre e os chantageia, levando os irmãos ao desespero e à separação: Ward saindo da vila para comprar sementes para plantação e Lenna buscando o consolo no templo. Esse é o ponto de virada da história.
Os soldados atravessavam as vilas carregando tudo o que pudesse ser mastigado, derretido ou vendido, deixando em seu lugar apenas promessas de papel dizendo que teriam tudo de volta um dia. Esquecendo-se que ninguém pode comer uma promessa.
A partir daqui temos uma separação física e de desenvolvimento dos irmãos com seus traumas, levando a duas possíveis versões do que seria o amadurecimento. A primeira versão é a de Lenna, cuja fé e pouco fagulho de esperança a levam a reforçar suas convicções e a lutar pelo o que acha que seja certo mesmo que os outros venham a se contrapor. A segunda versão, de Ward, é a do afogamento em seu trauma e do escapismo pelo consumo de álcool e dissociação da personalidade anterior. Aqui, a bondade ou empatia que estava presente no personagem é transformada em raiva, frustração, medo e cinismo daquele que não consegue viver consigo mesmo, mas que ainda tenta sobreviver. A mudança e trauma de Ward pode ser bem exemplificada nesta cena – que também dita o tom geral do livro:
Ward apertou o cabo da espada entre os dedos, sentindo-o escorregadio na lama. A raiva ardia em sua pele fazendo-o esquecer de sua nudez. A humanidade se desfazia de sua carne, dando lugar a uma coisa que não era nem remotamente racional. Uma criatura selvagem e grotesca que faria qualquer coisa para viver. (…) A espada cortou o ar como um pássaro silencioso (…). Então a ponta de aço encontrou carne e ossos, abrindo um talho por onde o sangue escapou para o mundo. Ward gritava, embora não percebesse o que estava fazendo. (…) A garota caiu sobre os joelhos sem acreditar no sangue que escorria pelo seu peito. (…) E Ward a matou. Não o fez para acabar com seu sofrimento. Nem por ser a coisa certa a fazer. Matou-a porque estava apavorado e para que aquilo acabasse de uma vez por todas. A garota, no final, continuava aferrada a vida e a cada nova estocada, Ward implorava para que ela parasse de respirar. (…) Já não era mais um homem.
É também nesse momento do livro que aparece o terceiro protagonista do livro, Druhu, um orog que estava foragido por ter matado membros do exército de Karis. Os orogs são criaturas gigantes de extrema força física, pele dura e cinzenta que realizam os trabalhos braçais do Império. Raptados quando jovens, são separados de suas mães para serem escravizados desde cedo e se tornarem dóceis. Druhu foi uma exceção, em que o medo o fez fugir e se rebelar. Ele se esconde no templo em que Lenna vai para rezar e ali nasce, aos poucos, uma amizade. Druhu é forte o suficiente para lavrar a fazenda dela com mais que o dobro da velocidade que ela e Ward normalmente conseguiriam. Entretanto, é necessário convencer o orog a realizar tal tarefa, além de ter de escondê-lo para não ser notado. Ele é perseguido pelo exército como um foragido assassino e caçado para cumprir sua pena.
A partir desse ponto, a história se desenrola com a degradação de Ward, a luta de Lenna para defender Druhu e a cobiça dos mais velhos da vila para tirar vantagem dos jovens e do orog. Diego acerta bem o tom ao tratar desses pontos e os temas tocados em seus personagens. O principal é a opressão institucional do Império em todos, independentemente de serem superiores ou não naquela pequena sociedade. Ao mesmo tempo em que os cidadãos são oprimidos, eles são os primeiros a reproduzirem essas opressões com os mais fracos e desestabilizados e, a cada sinal de vulnerabilidade, um tenta exercer um poder de dominação direto sobre o outro. O maior exemplo é Ward, que, à medida em que se corrompe e se afasta de sua bondade inicial, se torna exatamente o antagonista da proteção de sua irmã, se afastando cada vez mais da promessa de seu pai.
Vale ressaltar que, nesta obra do Diego Guerra, a guerra é uma lupa da mesquinhez humana e suas consequências afetam pesadamente os “de baixo” e ampliam o poder dos “de cima”. Seja no próprio sentido das leis interpretadas aos caprichos da magistrada, seja pela corrupção do prelado, seja pelas torções religiosas que servem para disciplinar a população ou apenas servir de alento. Uma situação em que apenas existem lobos ou porcos e que ninguém quer ser engolido. Uma situação em que a diferença do escravo para o cidadão livre possivelmente seja apenas a frequência do açoite, ou nem tanto.
Não existe liberdade entre os homens, senhora. Só diferentes formas de escravidão.
A divisão de capítulos é muito bem feita, tendo geralmente o mesmo número de páginas e dando um ritmo bom para ler. O que talvez possa afetar a velocidade de leitura para alguns é a crueza e dureza dos temas abordados. Diego não nos poupa das sensações, sejam elas físicas, sejam elas mentais, e estas em nenhum momento estarão em tons de alegria. Aliás, que alegria se pode tirar de uma guerra? O ponto forte do livro em si é trazer a empatia e olhar daqueles que mais sofrem em um contencioso. Enquanto senhores da guerra se planejam em seus salões, há quem pague os tributos de sangue para a máquina girar. E aqui sentimos as engrenagens da máquina em nossos ossos.
O gigante da guerra é um livro curto e muito bom para quem gosta de entender o ser humano em situações extremas. Quem busca uma grande batalha estilo Cornwell, não irá encontrar, até por não ser sobre isso. Aqui é trabalhada a história dos invisíveis. Por mais que seja em um universo fictício, sabemos que em muitos lugares do mundo temos Lennas e Wards dormindo tentando sobreviver à fome do gigante da guerra. Não é um livro com final feliz, como, aliás, não é para a maioria das pessoas que vivenciaram uma guerra.
O gigante de todas as guerras: o fraco pagaria com sangue, suor e merda a vitória que os fortes clamariam para si.
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