[Cuidado! Muitos spoilers abaixo!]
Não é novidade para ninguém que Parasita, do diretor Bong Joon-Ho, foi a sensação do mundo cinematográfico em 2019. Coroado com o Oscar de Melhor Filme – além dos de Melhor Direção. Roteiro Original e Melhor Filme em Língua Estrangeira -, Parasita é fruto de uma discussão social que marcou o ano passado. Uma discussão que alerta não apenas para o problema na Coreia do Sul, mas que é global, a tal ponto de Bacurau (Brasil) e Coringa (EUA) tratarem do tema similar: a diferença e luta de classes.
A arte não é algo abstrato que sai da genialidade metafísica de seu arauto, o artista, que, iluminado por uma benção, traz para a realidade. As obras artísticas são frutos da experiência, das relações sociais e interpretações de mundo do artista que convive com essa sociedade. A arte é o reflexo imediato que o artista põe em exibição após receber e reproduzir os estímulos que ele detém em seu consciente/inconsciente, além de sua própria relação de local de formação – seja de classe, opção política e ideológica. Portanto, não à toa os filmes acima citados tiveram produção na década em que cerca de 70% da riqueza global se concentra nos 1% mais ricos segundo a ONU, e tampouco não nos é estranho Parasita ganhar tamanha relevância e premiação no ano em que o Fórum Econômico Mundial afirma que o crescimento da desigualdade entre os empregos é um desafio ao avanço econômico e manutenção da democracia[1].
E o que resta à população que está na base da pirâmide social? O que resta às pessoas que veem cada vez mais reformas econômicas e trabalhistas ceifarem o mínimo de segurança que tem? Na luta pela sobrevivência, tudo vale. Em uma sociedade pautada pela concorrência, pouco vale passar por cima do outro para que você mantenha ou melhore sua qualidade de vida. Esse é o primeiro arco do filme Parasita. A família pobre Kim adentra como funcionários da família rica Park a partir de golpes nos outros funcionários já instaurados na casa. Um a um, os quatro membros da família Kim vão angariando suas vagas como professores, motorista e governanta a partir de falsificação de documentos e golpes para que as vagas fiquem livres. Não há a afirmação que eles são da mesma família para os patrões Park. São apenas indicações profissionais. Vale ressaltar que, mesmo com a aplicação dos golpes, os Kim são testados em suas habilidades e, um a um, conseguem seus cargos também por meio de seus “méritos”.
E nisso temos o primeiro indício de quem seria o Parasita. Seria a família Kim, claro! Aproveitadores da inocência da família Park. Essa impressão ainda é exacerbada para nós quando, no primeiro momento em que os Park saem da casa por um final de semana, os Kim tomam a mansão como deles. Ficam bêbados, fazem festa e enaltecem a pureza dos Park, excelentes patrões de alta estima. E eis que temos a visita surpresa da antiga governanta, Moon, pedindo para pegar algo que teria esquecido no porão da casa que, para a surpresa de todos, era o seu marido escondido em um bunker! Nesse momento, temos a transição de um filme com ares cômicos para a transição do terror/suspense.
A iluminação fica esverdeada e a fotografia muda bruscamente, criando a tensão no espectador. O nervosismo da descoberta do crime é latente. E, quando a matriarca da família Kim, em seu papel de nova governanta, recusa-se a ajudar Moon – faltando-lhe consciência e empatia de classe -, o filme revira de ponta cabeça a lógica e coloca o plano da família Kim em ameaça, transformando todo o segundo ato do filme em um fio desencapado, prestes a criar um incêndio. Pode-se cortar o ar com uma faca de tão manifesta que é a tensão.
Há pontos a ressaltar nesse momento. A matriarca Kim assume o papel de governanta de uma família rica. Uma pessoa acima socialmente àquela que lhe pede ajuda: uma desempregada que não tem mais um centavo, tem um marido escondido e que nem seguro de saúde ou desemprego tem, já que o Estado sul-coreano não o providencia. Essa característica esnobe, que a matriarca Kim absorve ao ter o seu papel, é um acerto da leitura social de Bong Joon-Ho. Há uma idealização, por parte dos sociólogos, da classe trabalhadora como unida e pura, uma classe inatamente pronta para compartilhar e de mútuo auxílio. Bong traz a realidade da ideologia na consciência do ser humano. A classe trabalhadora também sofre a formação de consciência a partir da ideologia dominante e do senso comum e, dentro de uma lógica de competição e concorrência, quer garantir o seu “pirão” primeiro.
E isso também nos traz a ação de Moon ao descobrir e gravar a farsa da família Kim. Em uma aula sobre dissuasão, a ameaça de Moon realizar o envio de sua “bomba nuclear” para conseguir manipular e dialogar com os Kim é a cartada de uma virada de jogo. As referências à Coreia do Norte não são gratuitas, já que o país sobrevive internacionalmente a partir da barganha de sua dissuasão nuclear, o que lhe garante não ser invadida por outros Estados e reduzir as sanções econômicas e diplomáticas impostas, principalmente pelos EUA. E dentro dessa lógica uma terceira bomba estoura: os Park estão voltando do acampamento por conta de uma forte chuva e estão a 15 minutos de casa. As duas famílias Parasitas se desesperam. Há de se ter um realinhamento entre eles para que os dois não acabem descobertos. Moon e seu marido presos no porão e machucados e a família Kim, fora a matriarca, debaixo da mesa de centro da sala.
Essa é a parte em que talvez tenhamos a descoberta de um possível terceiro Parasita. O casal Park fica deitado no sofá da sala sem perceber os Kim debaixo na mesa. Nesse momento, a cortina da hipocrisia é descoberta. Os inocentes e justos Park realmente falam o que pensam dos Kim e das classes mais baixas: o odor do cheiro de pobre que eles exalam, como daqueles desafortunados do metrô; a falta de modos; o salário que poderia ofertar mais e a fetichização da “imundice” ao realizar sexo no sofá com uma calcinha de baixo custo, proferindo uma série de diálogos sexuais com clichês. Vale ressaltar que os Park também são fãs incondicionais dos Estados Unidos. Quase como uma Meca civilizacional para esta família, eles assimilam a língua inglesa para expressão de satisfação e surpresa, usam a experiência de vida estadunidense como base para contratar e passam isso em um grau para seus filhos que o mais novo quer ser um nativo-americano. Ou seja, em algum ponto os Park se identificam mais com um povo estrangeiro que com o real povo coreano.
Quando a madrugada adentra, os Kim conseguem fugir da casa. A chuva torrencial cai na cidade, e os Kim, a pés, descem da “Cidade Alta” para a “Cidade Baixa”. Aqui temos outra reviravolta. É quando os Kim percebem que a distância entre os Park não é só uma questão de dígitos no banco ou uma casa melhor. Essa diferença é estrutural. É estrutural ao ponto que o mesmo fenômeno natural na cidade tem consequências diametralmente opostas para as duas famílias. Para os Park, significou uma melhora no ar poluído e um “ventinho” a mais. Para os Kim, significou a perda de todos seus bens, estar em um ginásio sem nada, quase se afogando para tentar salvar algum pertence e ter de ir trabalhar no dia seguinte, como se nada tivesse ocorrido. É aqui que a realidade impacta o pai Kim de modo acachapante: para os que trabalham para sobreviver, não adianta ter planos, pois o destino e a estrutura não permitem o melhor.
E, assim, entramos no terceiro ato. Com a cortina da hipocrisia descoberta, o pai Kim tenta ver se o patriarca Park tem algum coração, pergunta sobre o que ele sente sobre sua esposa. A resposta é que o senhor Kim está ali sendo pago e que tem de fazer o que ele manda e não essas perguntas. A senhora Park também trata sua relação com a família Kim apenas como uma relação comercial. E, no momento da epítome das facadas, o senhor Park mostra seu desprezo pelos pobres, mesmo que estes o louvem, e morre por isso. Seguimos, ao fim, com a esperança de um senhor Kim preso na mansão Park ser resgatado por seu filho. Este planeja estudar. Vai se formar e ganhar o suficiente para dar uma condição digna e resgatar seu pai. Porém, o final não é esse. É estar estagnado sonhando. Pois as condições não existem, a estrutura não lhe permite, a desigualdade é opressora de seus sonhos.
“Na escala em que, nessa guerra social, as armas de combate são o capital, a propriedade direta ou indireta dos meios de subsistência e dos meios de produção, é óbvio que todos os ônus de uma tal situação recaem sobre o pobre. Ninguém se preocupa com ele: lançado nesse turbilhão caótico, ele deve sobreviver como puder. Se tem a sorte de encontrar trabalho, isto é, se a burguesia lhe faz o favor de enriquecer à sua custa, espera-o um salário apenas suficiente para o manter vivo; se não encontra trabalho e não temer a polícia, pode roubar; pode ainda morrer de fome, caso em que a polícia tomará cuidado para que a morte seja silenciosa para não chocar a burguesia” (ENGELS, 2010, p.69)
Se ler este trecho de Friedrich Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra lhe fez sentido e correlação ao filme Parasita, é porque o modelo de sociedade que vivemos tem algo doentio em sua reprodução. É temeroso que um trecho de uma situação específica de um país em 1845 ainda reflita globalmente em 2020, ou cuja diferença esteja ainda maior, seja de modo absoluto, relativo e mais amplo geograficamente. No fim, o Parasita é a relação social que temos hoje. Um parasita é um ser que absorve do outro tudo que pode sem dar nada. As três famílias no filme eram parasitárias entre si, de modo que, ao fim, as três se destruíram. Parasita de Bong Joon-Ho nos faz repensar quem é realmente o detentor do título do filme: as famílias ou o modo de sociedade que temos?
[1] Vale ressaltar o dado de que, em média, um executivo de uma empresa ganhou em média 932% a mais que um funcionário do piso salarial nos países desenvolvidos em 2019.
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