ALERTA DE SPOILER!
Agora, vamos entender um pouco os simbolismos por trás da interpretação óbvia que apresentei no texto anterior, o que vai ajudar a entender o final do filme O Poço.
Primeiramente, temos a questão social. Como diz o sábio Trimagasi, “existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem”. Ou seja, os que estão no topo, os que estão na pobreza e miséria e os que, devido às condições extremas, “caem” no sentido de se tornarem pessoas ruins, canibais e violentas, o que ocorre com nosso Goreng. Esse “cair” não se refere apenas aos que não aguentam a pressão se se jogam no poço, mas sim ao corrompimento do homem.
Quando vi o comportamento das pessoas, o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi: como assim? Seria lógico imaginar que quem esteve nos níveis inferiores e viveu o inferno lá se comportaria de forma solidária quando estivesse nos níveis superiores; por exemplo, que comeria apenas o necessário para sobreviver, para que, dessa forma, chegasse comida aos níveis inferiores. Mas o que acontece é o oposto: quem está acima está literalmente “cagando” para quem está abaixo, mesmo essas pessoas sabendo que estão acima. Eles literalmente jogam excrementos na comida. Então observamos a egoísta e selvagem natureza humana. E nos níveis inferiores ocorre extrema violência e até canibalismo, devido à falta de comida.
O questionamento é: é da nossa natureza, lei dos mais fortes, ou a situação nos faz agir assim? Creio que seja a primeira opção. Fazendo o que o diretor propôs e me colocando na situação, eu certamente seria comida.
Goreng, que pode ser interpretado como o messias da situação, chegou a propor a ideia de racionar comida para que todos pudessem comer, e logo foi chamado de socialista. Sim, isso é muito real na nossa vida. A simples ideia de dividir nos deixa muitos agitados. Ele não foi bem-sucedido nessa empreitada. Há uma extrema falta de solidariedade e empatia, o que nos faz pensar também no tipo de pessoas que estão lá. Assassinos, sociopatas etc. Mas o Goreng é, aparentemente, um homem bom; ele entrou por conta própria. Além disso, há uma suposta criança que acabou entrando lá de forma misteriosa, já que, segundo a funcionária, menores de 16 anos não podem entrar.
A partir dessa garota, que ninguém vê até o final do filme, entendi que apenas pessoas culpadas por algo entram no poço, pois todos se referem a ela como “uma inocente”. Então, de fato, Goreng não é perfeito e fez algo para estar lá.
O que nos leva à outra interpretação desse filme: a prisão pode ser vista como o inferno e todos estão mortos. Eu me lembrei logo do inferno de Dante, representado em seu livro A Divina Comédia e na pintura “Mapa do Inferno”, de Sandro Botticelli, que é baseada na obra, assim como inúmeras outras. O inferno é representado como círculos concêntricos e em cada nível está um tipo de tortura para um tipo de pecado. O centro seria o estômago do próprio Satã. O filme nos remete a isso apresentando, depois de muito tempo, o último andar, que é o 333. Se são 333 andares, a quantidade de pessoas presas lá é 666, o número da besta.
A partir daí, muitas coisas fazem sentido. Como só existem três tipos de pessoas (as de cima, as de baixo e as que caem), é de se entender que não é possível sair, apenas descer. De fato, é possível transitar entre os andares, descendo junto com a plataforma de comida, mas em nenhum momento se viu a plataforma subir, então não é possível subir junto com ela. Então todos estariam ali pagando pelos pecados, pelos crimes, como um purgatório com caminho apenas para o inferno. Inclusive, algumas cenas violentas com mutilação e decapitação me fizeram lembrar de algumas partes da pintura de Botticelli.
Outra coisa que me fez pensar que estão todos mortos foi a funcionária que entra por conta própria. Ela tinha câncer em estado terminal. Então por que ela iria para o poço? Ela era responsável por cadastrar e mandar as pessoas para lá e não sabia o que se passava. Fiquei reflexiva num primeiro momento.
A própria administração que cuida da prisão, mandando a comida, parece não saber o que realmente se passa – o que eu acredito não ser verdade, pois seria utópico imaginar que 666 pessoas se organizassem sozinhas para comer. Infelizmente, não somos assim, temos esse ímpeto de nos dar bem na primeira oportunidade. Então, nos momentos finais do filme, durante a missão de levar alimentos para os presos nos últimos níveis, Goreng e Baharat (Emilio Buale) finalmente encontram a filha perdida de Miharu (Alexandra Masangkay), que estava escondida no último andar da prisão. Então, em vez de enviar a panna cotta, um doce fino e delicado, à Administração como uma mensagem de solidariedade espontânea, Goreng o entrega à criança faminta. Ao compreender que a jovem poderia seria ser, de fato, a verdadeira mensagem a ser enviada, o protagonista se sacrifica para salvá-la e finalmente tirá-la do poço.
A tal administração é um ente despersonalizado, nos remetendo ao Estado, mas é composta por pessoas, segundo o discurso de um velho sábio aleatório que aparece em um dos andares. Então a mensagem seria para essas pessoas.
A bendita garotinha estava lá no nível 333. O que logo me fez pensar: como ela sobreviveu por tanto tempo e intacta? Como ela sobreviveu aos níveis inferiores? Há várias possibilidades. Uma seria que a mãe maluca que viajava entre as plataformas a alimentava; outra é que, por ser inocente, ela conseguia estocar comida de alguma forma; a última seria que ela não existia, era fruto da mente de Goreng. Esta é a mais provável.
Ele já estava muito ferido e perturbado, e ver aquela garota foi o sinal de esperança. Real ou não, ela subiu junto com a plataforma e passou essa mensagem de esperança ao telespectador. Então, muitos se perguntaram por qual motivo o Goreng não subiu junto. Como falei, não é possível subir. Além disso, ele já estava morto e se juntou ao seu falecido amigo Trimagasi. Outra interpretação é a de que ele já fora corrompido e não tinha como sair.
Mas por que a garota? Goreng entende que a prisão representa o que há de mais egoísta dentro do ser humano. Ao salvar a criança, ele entende que uma vida que está em risco pode ser salva se fizermos uma ação de solidariedade. Como o próprio protagonista diz no final: “nenhuma mudança é espontânea”, ou seja, é necessário passar por todos os níveis para se criar compaixão para com os mais necessitados. Ao salvar a vida da garota, Goreng cria uma ponta de esperança para que essa mudança ocorra.
Então, o final não é tão complexo como aparenta. É óbvio que ele morreu e que não importa se a garota era real ou não; o que importava era a mensagem de esperança para nós que assistíamos, não para a administração. Esperança na capacidade humana de benevolência, de solidariedade voluntária; esperança de nos livrarmos de tamanho sofrimento no inferno. Esperança de que podemos mudar a sociedade.
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