“É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós”
Franz Kafka
Kafka, em boa parte de suas obras, critica de maneira inquietante os julgamentos pessoais, a culpa, o isolamento, a passividade e a falta de comprometimento com nós mesmos. Somos dominados por um mal-estar constante durante suas narrativas, devido, especialmente, à instabilidade dos seus personagens e do meio ao qual pertencem. São narrativas oníricas, repletas de momentos surreais e insólitos, que criam um clima de desorientação metafísica. E, dessa maneira, o homem comum, escravo de sua própria vida, de sua condição social, de sua família, encontra-se, de repente, suprimido numa monstruosidade incompreendida, em meio a diversas situações de absurdo. Nesse diapasão, se a literatura de Kafka é “um machado para o mar congelado que há dentro de nós”, também o é o cinema do diretor grego Yórgos Lánthimos, que tem se revelado um dos nomes mais radicais e originais da indústria cinematográfica nos últimos tempos.
Seguindo a mesma linha metafórica de filmes como Mãe! (Darren Aronofsky) e o recente O Farol (Robert Eggers), que retomaram conceitos clássicos bíblicos e da mitologia grega, respectivamente, o filme de Lánthimos apresenta uma releitura e, ao mesmo tempo, uma desconstrução da tragédia grega “Ifigênia”, que narra um dos eventos mais chocantes da guerra de Tróia. Nessa, o rei Agamenon mata um cervo sagrado em uma caçada e, para se redimir perante a deusa Ártemis – que, enraivecida, assolou os soldados gregos com a peste e provocou uma calmaria que não permitiu a saída dos navios gregos do ancoradouro, impedindo que zarpassem para a guerra em Tróia –, consente com o sacrifício de sua própria filha, Ifigênia. Importante destacar que as metáforas e releituras do filme não perfazem apenas o mito em questão, mas também trazem à tona diversas imagens e referências ao cristianismo.
O Sacrifício do Cervo Sagrado acompanha o renomado cirurgião Steven Murphy (Colin Farrell), que vive com sua esposa (Nicole Kidman), sua filha adolescente e seu filho caçula, mas que mantém secretamente um estranho contato com Martin – interpretado magistralmente pelo, até então, pouco conhecido Barry Keoghan –, o filho de um ex-paciente. Quando, subitamente, o filho caçula perde o movimento das pernas, a trama passa a levar o espectador pelos caminhos angustiantes e tortuosos de uma relação que transcende a simples vingança e até mesmo os conceitos distorcidos de justiça, estabelecendo-se como uma cruel reparação simbólica, fundamentada no princípio da Lei de Talião.
A experiência angustiante proposta em Dente Canino e O Lagosta, obras anteriores do diretor grego, também está presente em O Sacrifício do Cervo Sagrado, assim como a estética fria e a ambientação estéril, com planos-sequências e tomadas estáticas e prolongadas a ponto de gerar desconforto, remetendo à filmografia de cineastas como Michael Haneke e Lars Von Trier. Essa estratégia visual, construída para causar estranhamento, é reforçada pelo brilhante e coeso roteiro, escrito por Yórgos e Efthymis Filippou, que apresenta uma secura angustiante nos diálogos e nas relações interpessoais, e pelas atuações antinaturalistas de todos os membros do elenco, que recitam suas falas de modo impassível, sem quaisquer inflexões, como que desprovidos de sentimentos. Se o estranhamento como técnica narrativa de Lánthimos nos prende, seu humor nos deixa em situação delicada, pois gera incômodo constrangimento. A trilha sonora, por sua vez, merece destaque especial. Grandiloquente e operística, encaixa-se perfeitamente com a atmosfera criada, uma vez que os tons marcantes das peças aumentam exponencialmente a apreensão causada na audiência.
Perturbador e original, do início ao fim, o filme é permeado por um clima de tensão constante, que invoca uma crescente ânsia de catarse por parte do espectador. O choque ocasionado pelo clímax, contudo, não se dá por puro niilismo, mas para possibilitar uma análise da natureza humana, dando vazão à consistente, porém intrincada, visão do ‘auteur’. A obra é um deleite para o público que aprecia a busca por signos, significados e significantes. O roteiro, premiado em Cannes, surpreende ao possibilitar as mais variadas interpretações, sejam elas de caráter místico e fantasioso, ou absolutamente calcadas na realidade. Essa dualidade do roteiro, que permite a análise dos fatos apresentados no filme tanto pelo viés racional, como pelo sobrenatural, faz com que a obra permaneça na mente do espectador muito tempo após o fim da sua exibição, além de dar ensejo a interessantes discussões.
Com o lançamento do seu filme seguinte (A Favorita), Yórgos Lánthimos se consagrou como um dos melhores diretores de sua geração, e alcançou um público que ainda não havia experimentado seu universo ímpar. Assistir a um filme de Lánthimos é uma experiência única, contudo, bastante desafiadora, e O Sacrifício do Cervo Sagrado é, sem dúvida, o seu melhor e mais bem-acabado trabalho. Simplesmente essencial.
Mais sobre FILME
Puxadinho Cast #106 | Netflix TUDUM 2023
O TUDUM é o evento realizado pela Netflix para anunciar seus grandes lançamentos, trazer artistas para ter contato com o …
Opinião Sincera | A Pequena Sereia (2023)
Após muitas expectativas, finalmente, em maio de 2023, foi lançada a adaptação para live action de A Pequena Sereia (The …